terça-feira, 13 de novembro de 2007

RESENHAS

Faremos uma pequena pausa nos debates sobre o CACD. O Diálogo Diplomático está publicando quatro resenhas de obras relacionadas à diplomacia, elaboradas como exercício da disciplina de redação do IRBr. Eu decidi compartilhar minha resenha e meus colegas Fábio Simão Alves, Gustavo Pereira e D. G. Ducci aceitaram o convite para publicarem as suas. Os temas e obras podem interessar a muitos leitores do blog, espero que apreciem.
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CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. Série Perfis Brasileiros, Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2007.

Maurício Costa


A história do Brasil contada do ponto de vista do Imperador ou a vida do Imperador contada de acordo com a história do Brasil? A biografia de D.Pedro II, escrita por José Murilo de Carvalho, é uma resposta afirmativa a ambas as perguntas. Da abdicação do pai ao ocaso do Império no simbólico baile da Ilha Fiscal, acompanhamos, ao mesmo tempo, o processo histórico e os sentimentos de um homem que confundiu sua vida com a vida política do País.
A obra de José Murilo de Carvalho é um exercício historiográfico de alto grau de dificuldade. O autor elaborou seu trabalho com base nos diários e cartas de D. Pedro II, bem como em uma ampla consulta bibliográfica e em diversas outras fontes primárias. A narrativa é fluida, quase literária, muito embora não lhe escapem a precisão dos fatos e o viés analítico do historiador. O autor é bem sucedido na tarefa de conciliar os processos, os personagens, os sentimentos e as convicções na condução da narrativa.
O medo dos canhões, a coroação e o choro de um menino de cinco anos em 1831 se misturam à necessidade de manutenção da unidade nacional, à instabilidade política e ao processo de consolidação do Brasil independente. Pedro de Alcântara, o imperador criança, seria um dos estadistas mais respeitados do mundo. D.Pedro II seria um homem de amores impulsivos, de amor duradouro pela Condessa de Barral, frustrado por não ter a oportunidade de viver como um cidadão comum.
Ao longo da narrativa, conhecemos o D. Pedro II apaixonado pelas letras e pelas artes, homem culto e de convicções fortes. Esse mesmo D.Pedro II também nos é apresentado como um homem de princípios políticos claros, exasperado com a hipocrisia dos políticos profissionais, absorto pelos problemas do país e apaixonado pelo Brasil. Um D. Pedro II diferente daquele personagem dos livros escolares nos é revelado quando seus amores, suas paixões e seus desejos são narrados de próprio punho em suas cartas e em seu diário pessoal.
A história pessoal tem como pano de fundo os principais fatos históricos de seus quarenta e nove anos de reinado: a maioridade, a consolidação da unidade nacional, as políticas intervencionistas na Bacia do Rio da Prata, a Guerra do Paraguai, as relações com a Inglaterra, a questão religiosa, a questão da abolição, o republicanismo e. as contradições do poder moderador. A voz de Pedro de Alcântara, homem comum e Imperador, com mediação de José Murilo de Carvalho, expressa seus sentimentos e convicções em relação a tais eventos e contribui para esclarecer muitas dúvidas a respeito de interpretações de seus atos como governante do Brasil.
A doença, a decadência de sua capacidade para unir as elites políticas, a queda e o exílio dão ao epílogo da obra de José Murilo de Carvalho, assim como ao epílogo da vida de Pedro de Alcântara, um tom melancólico que parecia prenunciar o caos que se instalaria no Brasil republicano. A morte de D. Pedro II não é o fim de sua história, mas o início da recuperação da imagem de estadista, de político e de maior personalidade brasileira do século XIX, quem sabe a maior de nossa curta história como nação independente.
D. Pedro II, da série Perfis Brasileiros, é uma biografia de altíssima qualidade que merece a atenção dos leitores, tanto pela beleza da história que é contada quanto pelo talento do historiador José Murilo de Carvalho, um de nossos maiores especialistas em história do Império.

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Barboza, Mario Gibson. Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida. Rio de Janeiro: Record, 1992.
Resenha

Fábio Simão Alves

O historiador e escritor escocês Thomas Carlyle disse uma vez que “uma vida bem escrita é quase tão rara como uma vida bem vivida”. Avaliada a partir dessas palavras, “Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida” é, certamente, uma daquelas obras raras, ou melhor, duplamente raras: o livro do ex-chanceler Mario Gibson Barboza é uma vida bem escrita a respeito de uma vida bem vivida.
A obra de Mario Gibson não é, a bem da verdade, uma autobiografia, mas, antes, um livro de impressões, um livro de memórias do tipo incomum: “Na Diplomacia...” é muito mais uma história fatual da política externa do Brasil, durante um período de mais de meio século (1940-1992), do que a história da vida de um homem. Mario Gibson se coloca como o co-adjuvante de um enredo em que a Diplomacia brasileira é a personagem principal.
Mario Gibson Barboza é uma das figuras mais destacadas da Diplomacia brasileira contemporânea. Ingresso no serviço exterior em 1940, galgou ao longo de cinco décadas os postos mais importantes da carreira: ministro-conselheiro nas Nações Unidas; Embaixador em Washington, Londres e Roma; Chefe de Gabinete nas gestões Raul Fernandes, Afonso Arinos e San Tiago Dantas; Secretário-Geral na gestão Magalhães Pinto; e, finalmente, Ministro de Estado das Relações Exteriores no governo Médici. Mais importantes do que sua trajetória pessoal, no entanto, foram as profundas transformações por que passou o Brasil no período que coincide com sua carreira, e que são, na realidade, o fio condutor de seu livro.
Com elegância e sensibilidade, Mario Gibson descreve algumas das figuras mais importantes de nossa Diplomacia: suas páginas trazem ricas histórias de Raul Fernandes (“o homem que viria a ser tão importante em minha vida, que me daria todo seu afeto de pai que nunca foi, que exerceria tão forte fascínio sobre mim e seria determinante na minha carreira diplomática”) e San Tiago Dantas (“depois que o encontrei, tanto sua figura de homem público como sua persona me foram sendo reveladas no que para mim ficou sendo a minha verdade [...]. Como e quando se organizará novamente um ser tão excepcional?”). Não faltam tampouco análises penetrantes das mais variadas personalidades políticas, do Brasil e do mundo, que Mario Gibson conheceu durante sua carreira: Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Emílio Médici, Delfim Netto, Golda Meir, Henry Kissinger, Richard Nixon, Anwar Sadat...
Exibe uma visão abrangente e perspicaz quando analisa os principais momentos da política externa brasileira na segunda metade do século XX. De forma bastante modesta, põe-se no lugar de observador, mesmo nos momentos em que atuou de forma decisiva, para oferecer ao leitor um relato preciso de momentos fundamentais da Diplomacia brasileira, como o lançamento da Operação Pan-Americana, a expulsão do governo cubano da OEA, o lançamento da idéia de Itaipu, a transferência do Itamaraty para Brasília, o lançamento da Diplomacia do Interesse Nacional no governo Médici, as crises com os Estados Unidos nos anos 70, a consolidação da política africana na Diplomacia brasileira. Sua perspectiva de participante de todos esses momentos oferece ao leitor uma nova visão dos fatos, que perdem parte do caráter formal que imprimem os manuais de História Diplomática para, quase que romanceados – sem prescindir, no entanto, de fidedignidade – assumirem uma proximidade que atrai o leitor para dentro dos acontecimentos, tornando-os muito mais interessantes à medida que se revelam mais e mais próximos.
No livro, não faltam passagens que desvendam momentos de bastidores da Diplomacia, sem que o autor, no entanto, se incline para a vulgaridade do gossip, tão ao gosto de muitos (pseudo-)escritores de memórias, inclusive ex-diplomatas... Uma das mais interessantes, reveladora do caráter de Mario Gibson e de seu amor pela Casa, é um diálogo que teve com o Presidente Médici, em 1971, a respeito de críticas que o então super-ministro Delfim Netto tecera à política africana lançada pelo Itamaraty. O Chanceler, ultrajado pelas críticas de Delfim, mandara o Secretário-Geral, Embaixador Jorge de Carvalho e Silva, rebatê-las por meio de nota à imprensa, o que desagradou ao Presidente. Repreendido fortemente por Médici, Gibson assumiu posição de resistência decidida: “Olha, Presidente, vamos fazer um acordo? O senhor fala com o Delfim Netto para não se meter no Itamaraty. Ele se mete em todos os Ministérios, eu não tenho nada a ver com isso. Mas no meu não se mete”. Ao que Médici respondeu, sorrindo, de forma surpreendente para o próprio autor: “Você é um pernambucano de sangue muito quente. É pior do que no Rio Grande!”.
É com clareza, sensibilidade para os fatos e as pessoas e, mesmo, certa informalidade que Mario Gibson tece em sua obra um quadro de impressões nítidas sobre os cinqüenta anos de Diplomacia brasileira dos quais foi co-adjuvante – ora secundário, ora principal, mas sempre um co-adjuvante. “Não pretendi fazer desta narrativa uma autobiografia, nem tampouco um livro de memórias”, escreve-nos Gibson. Não há no livro sua história; o que há ali são, como reconhece o ex-Chanceler, “minhas histórias”. Histórias da Diplomacia, que se confundem com a história da vida de um homem excepcional. A obra revela, talvez, a sina de todo diplomata: suas vidas pessoal e profissional inevitavelmente se confundem, a ponto de ser uma única vida, vida esta cujo “traço todo” está fadado a ser a Diplomacia.
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SARAIVA GUERREIRO, Ramiro. Lembranças de um empregado do Itamaraty. São Paulo: Siciliano, 1992.

Gustavo dos Santos Pereira


A obra Lembranças de um empregado do Itamaraty, do diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores Ramiro Saraiva Guerreiro, ao lado das memórias do embaixador Gibson Barbosa (Na diplomacia, o traço todo da vida), constitui retrato fiel da atuação do Itamaraty na década de 70 e no início dos anos 80, período dos mais significativos para a redefinição da política externa brasileira.
O título da obra, segundo o próprio diplomata, remete a uma expressão comumente usada pelo embaixador Cyro de Freitas-Valle, a quem credita muito do que sabe e a quem considera um mentor intelectual e profissional. Nas próprias palavras de Guerreiro, “não há capacidade de mando se antes não se obedeceu”; para ele, portanto, a expressão “empregado do Itamaraty” reveste-se de um tom de humildade e revela o espírito de aprendizado árduo do qual está imbuída a profissão de diplomata.
Ao longo do texto, damo-nos conta facilmente de que Saraiva Guerreiro tem a preocupação de convidar o leitor a adentrar o universo de suas memórias. É inegável a estratégia de ambientação que o ex-ministro adota para que o leitor se sinta familiarizado com os conceitos que norteavam a diplomacia brasileira na época em foco. Terceiro-mundismo, política externa independente, desenvolvimento, não-alinhamento são conceitos manuseados com habilidade e conhecimento de causa pelo autor de maneira a trazer o leitor ao pensamento do Itamaraty no período do chamado “pragmatismo responsável” em política externa.
Saraiva Guerreiro teve uma brilhante carreira. Serviu em Washington, Paris e Nova Iorque, na missão junto a ONU, e tornou-se conhecido por sua atuação como secretário-geral da casa (de 1974 a 1979) durante o governo Geisel e como ministro das Relações Exteriores do governo Figueiredo (de 1979 a 1985). Testemunhou, nessas altas funções, episódios da política internacional tão marcantes quanto a Guerra das Malvinas ou a formação do Grupo de Contadora, de apoio à pacificação dos países da América Central. É sobre esse período que transcorrem as histórias e relatos da obra, sempre pontilhadas pelo bom-humor que é habitual a Saraiva Guerreiro.
Um dos trunfos de sua estratégia discursiva é evitar que o livro siga um roteiro cronológico. Com efeito, Saraiva Guerreiro nos brinda com suas ricas experiências e as anedotas saborosas sem preocupar-se com qualquer tipo de ordem ou plano. O livro atrai o leitor ao aproximar-se do fluxo de consciência, ao acercar-se quase de um relato leve de quem toma uma caneta à mão e desata a escrever. Ressalte-se, contudo, que se há divisões em Memórias de um empregado do Itamaraty, essas são temáticas, por opção didática expressa do autor.
É interessante notar que o ex-ministro de Estado, entre uma anedota e outra, defende a idéia de que o “pragmatismo responsável” é uma releitura crítica da antiga “política externa independente”, e não significa outra coisa senão uma natural adaptação do Itamaraty aos novos desafios do mundo da détente, sem abandonar suas tradições. Nas entrelinhas do seu discurso, extrai-se o âmago da política externa que ajudou a elaborar: uma opção deliberada por aquilo que hoje se chama de “Sul”, e um certo ressentimento para com um “Norte” incapaz de contribuir para satisfazer as necessidades próprias de um país em desenvolvimento como o Brasil.O livro de Saraiva Guerreiro é conciso, elucidativo e de leitura extremamente agradável e lúdica. Mais do que isso, o livro ganha um interesse especial já que trata de uma época que se constitui como embrião da atual política externa brasileira: Memórias de um empregado do Itamaraty prova como esta é herdeira da política externa do Itamaraty dos anos 70, e como a continuidade tão cara a esse ministério não é apenas um discurso retórico.

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Diplomacia Cultural, de Edgard Telles Ribeiro

D. G. Ducci

O chanceler Celso Amorim tem reiterado que o processo de integração sul-americana não deve ser apenas um projeto de governos e de empresários, mas também dos povos e das civilizações. Não basta que os presidentes e os políticos sejam integracionistas; é preciso, nas palavras do ministro, que o “guarda da esquina” também o seja. Mudanças no pensamento e nas atitudes das populações significam aquisições de traços culturais diferenciados. Amorim, que construiu boa parte de sua carreira preocupado com os temas da diplomacia cultural, sabe muito bem disso.

Outro profundo conhecedor dos meandros da ação diplomática no campo da cultura é o Embaixador Edgard Telles Ribeiro. Assim como Amorim, Telles Ribeiro tem sua carreira ligada à área cultural do Itamaraty. Além de diplomata, é romancista e contista, tendo publicado cerca de uma dezena de livros na última década e meia. Sua obra – estranhamente menos conhecida do grande público do que deveria – já foi publicada em diversos países, como Estados Unidos, Alemanha e Holanda.

Desde o fim da década de 1970, Telles Ribeiro tem trabalhado com temas afeitos às relações culturais do Brasil. Seu livro “Diplomacia Cultural: seu papel na política externa brasileira” foi publicado, em 1989, em uma tradicional edição da Fundação Alexandre de Gusmão, e trazia as reflexões, até aquele momento, do então Conselheiro da carreira diplomática.

Telles Ribeiro escrevia, naquele momento, em um mundo em que a Internet ainda não havia se popularizado para além os meios militares e acadêmicos, e em que o tema da globalização ainda não havia se tornado recorrente na imprensa e nos trabalhos dos intelectuais. O Mercosul não existia, e, no ordenamento jurídico interno, não havia leis de incentivo à cultura nos moldes da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual. Dessa forma, poder-se-ia dar a impressão de que o livro está ultrapassado e fora de contexto. Entretanto, as bases conceituais e estratégicas sobre o tema, ali presentes, sobreviveram ao tempo e ganharam relevância.

Não se trata de obra que aprofunde a discussão sobre o conceito de cultura. A bibliografia utilizada no estudo traz autores ligados não à antropologia, mas à política e às relações internacionais. Em vez da interpretação das culturas de Clifford Geertz, o texto tem como base Charles Frankel, relatórios da UNESCO, Celso Furtado e até T.S.Eliot. Em breves três páginas, Telles Ribeiro admite “tomar de empréstimo à antropologia sua concepção mais básica de cultura”, que seria a “soma dos hábitos, costumes e realizações de um indivíduo, uma comunidade, um povo, ao longo de sua história”. Essa definição simples serve aos propósitos do estudo, a discussão dos parâmetros de desenvolvimento da diplomacia cultural.

O autor reconhece e reforça as duas grandes frentes de ação da diplomacia cultural. Por um lado, pode ser utilizada como um instrumento de aproximação entre os povos, de amenização das desconfianças mútuas e de fomento à cooperação internacional em causas comuns como a luta pela paz e a preservação do meio ambiente. Por outro lado, a consecução de objetivos nacionais de natureza diversa da cultural – prioridades políticas, econômicas e comerciais – pode encontrar nas ações da diplomacia cultural poderoso mediador e aliado.

Além disso, é defendida a tese de que, ao promover seus bens culturais no exterior, os países reafirmam permanentemente suas identidades nacionais. A diplomacia cultural do Brasil, ao trabalhar além das fronteiras do país, seria parte de nossa consolidação interna. Esse duplo efeito teria maior eficácia quanto mais as linhas de ação refletissem a diversificada realidade cultural brasileira. O Ministério das Relações Exteriores possuiria, pois, papel singular também em áreas da política cultural interna do país.

Passadas quase duas décadas da publicação de “Diplomacia Cultural”, a escassez bibliográfica acusada no prefácio de Sergio Rouanet permanece. Fica o convite para que Telles Ribeiro e outros diplomatas e acadêmicos atualizem o tema, incorporando novas abordagens das relações internacionais – como, por exemplo, o modelo de “poder estrutural” de Susan Strange – a suas contribuições. Em tempos de diplomacia dos povos, nada parece mais justificável.

Um comentário:

Anônimo disse...

Excelente resenha, rapaz lógico racional!
Espero que você esteja se divertindo com as aulas de redação do índio.
Gostei da idéia de ter postado a resenha sobre este livro maravilhoso do Zé Murilo. Assim o blog fica mais leve e menos "bitolado"... Espero que os comentários pragmáticos e objetivos sobre o CACD dividam espaço com outros textos elegantes como este que você postou.
Um abraço.

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