A América Latina é tradicionalmente uma região estável e pacífica, quando comparada com os demais continentes. Com efeito, talvez seja a região mais pacífica do mundo, diante da ausência de guerras inter-estatais, do baixo nível dos conflitos políticos e diplomáticos, da presença de estruturas institucionais para a solução pacífica de controvérsias e do baixo gasto armamentista pelos países da região.
Isso não significa, no entanto, que as questões de segurança estejam ausentes da agenda política da latino-americana. O objetivo deste texto é discutir algumas dessas questões, analisando-as também a partir da perspectiva da política externa brasileira. Não é demais lembrar que oescrevo em caráter estritamente pessoal, e que as opiniões aqui expressas não necessariamente refletem as opiniões do Governo Brasileiro.
Desde o final da Guerra Fria, a agenda internacional de segurança tem passado por sensíveis alterações - como de resto a própria política internacional. As noções e concepções de segurança clássica, que envolve basicamente a guerra entre Estados, têm cedido lugar claramente ao que se tem convencionado chamar de novos temas: a guerra entre Estados deixou de ser a grande ameaça da política internacional de segurança, e novas (e às vezes inusitadas) ameaças (re-)emergiram: narcotráfico, terrorismo, crime transnacional, movimentos de refugiados, epidemias, desastres climáticos etc. Na atualidade, a comunidade internacional se vê obrigada a lidar com uma gama muito mais vasta de ameaças e desafios, algo reconhecido no famoso relatório In Larger Freedom (2004), do ex-secretário-geral das Nações Unidas Kofi Annan. Vive-se, com efeito, uma época em que a segurança se reveste de um caráter verdadeiramente multidimensional.
Tendo esses conceitos em mente, parece válido afirmar que as questões de segurança na América Latina são muito mais atinentes a essas novas ameaças do que à concepção clássica de segurança, em que o conflito inter-estatal desempenha papel fundamental. Aqui, por exemplo, o narcotráfico é uma ameaça muito mais premente do que a guerra ou os conflitos de cunho político armados, especialmente para alguns países da região (como o exemplo óbvio da Colômbia, mas também o Brasil, onde a violência a que assistimos diariamente em nossos televisores tem como raiz o narcotráfico internacional). O crime transnacional - que encontra em alguns paraísos fiscais em países da região ambiente propício para proteger seus negócios -, bem como as ameaças climáticas - que atingem a região mais rica do planeta em biodiversidade, em reservas de água doce, em reservas de água subterrânea etc. - são, entre tantas outras, ameaças que parecem exigir mais atenção dos governos da região do que conflitos inter-estatais.
Ainda assim, seria enganoso pensar que os conflitos "clássicos" de segurança estão ausentes da América Latina. Em sua grande maioria, estão fundamentados em conflitos fronteiriços que há décadas - séculos, em alguns casos - permanecem sem solução. No Cone Sul, Argentina e Chile disputam zonas ao sul de seus territórios, especialmente o Canal de Beagles, próximo à Terra do Fogo; na região amazônica, Equador e Peru disputam uma extensa faixa de território, o que inclusive levou os dois países a um conflito armado de pequenas proporções em meados dos anos 90; também na região amazônica, a Venezuela reclama quase um terço do território da Guiana, na região de Essequibo; finalmente, o conflito fronteiriço mais longo e mais persistente envolve o Peru, a Bolívia e o Chile, e tem raízes na guerra do Pacífico, que envolveu os três países de 1879 a 1881.
A Venezuela é, atualmente, o centro das questões de segurança na América Latina. Pode-se conjecturar sobre suas causas, mas é fato inegável que a Venezuela tem promovido um rearmamento notável - a compra de 100.000 fuzis Kalashnikov e quase duas dúzias de caças russos Sukhoi foram os movimentos mais espetaculares - e midiáticos - dessa política levada a cabo por Caracas. Parece-me, no entanto, que a Venezuela comporta muito menos riscos para a região do que querem fazer-nos crer alguns setores, nacionais e estrangeiros. Com efeito - e isso é opinião pessoal -, parece-me que o rearmamento da Venezuela tem como alvo o público interno venezuelano e, principalmente, o estamento militar, uma das bases de sustentação da "revolução bolivariana".
A retórica do Presidente Hugo Chávez Frías se dirige contra o "imperialismo americano" e suas ameaças, mas parece muitíssimo pouco provável que haja uma invasão estrangeira na Venezuela, promovida pelos Estados Unidos ou por qualquer outro país. Basta lembrar que a Venezuela é um dos maiores fornecedores de petróleo para os Estados Unidos, e nem um nem outro país têm interesse em interromper esse lucrativo negócio. Da mesma forma, é implausível imaginar que Washington promoveria a invasão de um país latino-americano - abrir uma terceira frente de guerra enquanto o Oriente Médio continua mergulhado na instabilidade? e fundamentar a invasão em quais motivos?
Do lado oposto, existe o receio de que o armamentism venezuelano nao seja defensivo, mas, antes, ofensivo - ou seja, a Venezuela comportaria riscos a seus vizinhos. Outra vez, creio que seja improvável. Nem a Venezuela tem tanta capacidade de projeção de poder, nem os vizinhos latino-americanos se sujeitariam a assistir impassíveis a atos de agressão e de guerra na região. Lembremos que o conflito perúvio-equatoriano de 1994 envolveu imediatamente a ação diplomática e política de países da região, como a Argentina e o Brasil, bem como dos Estados Unidos. Felizmente, a América Latina conta com uma série de mecanismos de governança e solução de conflitos que atuariam energicamente em caso de violação, por um de seus membros, da regra basilar da renúncia ao uso da força.
Vizinha à Venezuela, a Colômbia enfrenta há mais de quatro décadas o maior e mais sangrento conflito armado latino-americano das últimas décadas - apenas nos últimos 15 anos, foram mais de 20.000 mortos. As duas guerrilhas que ainda continuam ativas no país - as Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) e o Ejército de Liberación Nacional (ELN) controlam de 20% a 30% do território colombiano e, alimentando-se do narcotráfico, impingem ao país um sangrento conflito civil, que conta também com a atuação de forças paramilitares de direita. O combate às guerrilhas pelo governo colombiano tem contado com o apoio dos Estados Unidos, que, por meio do Plano Colômbia, concedem armas e capitais ao governo de Bogotá, garantindo a Washington uma presença ativa nesta região do continente.
Para além da América do Sul, o Caribe também comporta algumas das mais importantes questões de segurança latino-americana. A região, bem como o istmo centro-americano, foi palco, nos anos da Guerra Fria, de inúmeros conflitos, que quase sempre contaram com a intervenção dos Estados Unidos: Nicarágua, Granada, Guatemala, Honduras etc. Nos anos 90, muitos desses conflitos foram solucionados pela ação de forças de paz nas Nações Unidas, bem como pela atuação político-diplomática de países da região - vale a pena lembrar que os conflitos nicaragüenses ensejaram a criação do Grupo de Contadora e do Grupo de Apoio, que fundiram-se no Grupo do Rio, um dos mais importantes mecanismos de concertação diplomática e política entre os países latino-americanos.
O Haiti tem sido fonte de instabilidade desde os anos 90 na região, e já foi palco de duas intervenções legítimas da comunidade internacional - uma em 1994 e outra em 2004, esta por meio da MINUSTAH, força de paz comandada pelo Brasil. O progresso do país rumo à normalidade político-institucional democrática é um alento para um povo mergulhado em gravíssimos problemas sociais, políticos e econômicos. O trabalho das Nações Unidas, em geral, e do Brasil, em particular, merece respeito e elogios.
Um palco de possíveis conflitos - graves em potencial - parece ser Cuba. A situação de saúde de Fidel Castro parece apontar para a saída de cena do general que há quase 50 anos comanda a ilha. Fazer qualquer prognóstico sobre o futuro da ilha após o desaparecimento de Castro da cena política cubana é arriscado, mas é um exercício válido de imaginação. O que acontecerá? Raúl Castro assumirá o lugar do irmão por um processo normal? Os Estados Unidos intervirão na ilha? Se sim, fá-lo-ão militarmente? Cuba se conduzirá a si própria a um regime democrático por meio de um processo de abertura política, similar a sua lenta, mas notável, abertura econômica?
Cuba é um dos últimos - se não o último - bastião da Guerra Fria, e prova ser um desafio ao orgulho nacional dos Estados Unidos. Mais do que isso, a instabilidade na ilha poderá levar milhares de refugiados a buscarem o caminho da Flórida para fugir de uma situação de colapso político. Vale a pena lembrar que o medo de que refugiados aportassem nas praias americanas de forma descontrolada foi um dos fatores que fizeram os Estados Unidos pressionar o Conselho de Segurança por uma intervenção no Haiti em 1994.
Região tradicionalmente pacífica, a América Latina ainda assim comporta ameaças e desafios - antigos e novos, "clássicos" ou "multidimensionais" -, que merecem a devida atenção de todos os governos da região. O Brasil não é a exceção. A despeito dos alardes criados aqui e acolá, o Brasil continua sendo o país militar e politicamente mais influente da região (descontando-se, é óbvio, potências extra-regionais com presença marcante no continente, como os Estados Unidos), e mantém sua capacidade de projeção de poder diplomático e, mesmo, militar. Evidente que o país não tem qualquer pretensão de exercício de força - mas a manutenção dessa capacidade é crucial para sua política externa e para o processo de integração sul-americano, que precisa fazer frente aos dissensos que ainda opõem países que devem ser parceiros nesta empreitada fundamental para a promoção de nossos interesses comuns. E isso não é retórica: uma América Latina próspera, unida e pacífica é condição fundamental para a inserção dos países na região num sistema internacional ainda indefinido, obscuro, cuja única tendência que parece certa - até o momento - é o adensamento da interdependência entre os Estados e os povos. A estratégia do "dividir para governar" só poderá ser evitada na América Latina pela sinergia e pela união de suas nações. Pré-condição, também, para se fazer frente conjuntamente às outras ameaças que acometem a todos indiscriminadamente, tal como o narcotráfico e as ameaças ambientais. Assim como na política e na economia, também na segurança é recomendável que haja uma comunhão latino-americana - ou, ao menos, sul-americana.
Um artigo (curto, mas interessante) sobre o assunto pode ser encontrada na Revista Panorama da Conjuntura Internacional: "A América do Sul Estratégica", de Mario Cesar Flores. GACINT-USP, nº 32, 2007, http://www.usp.br/ccint/gacint/panorama40-31.htm.
3 comentários:
Caríssimo,
Excelente artigo, como sempre.
Entre as estruturas de governaça regional, seria interessante citar a subsecretaria de segurança multidimensional da OEA, no momento ocupada pleo Brasil, e incorporação da Junta Interamericana de Defesa à OEA.
Quanto à Venezula: evidente que não haverá uma invasão militar, mas não se pode ignorar que há intenções golpistas internas apioadas pelos EUA, que são mais que evidentes desde o golpe fracassado de 2002. No mais, eu acho que o clima de histeria criado em torno da militarização da Venezuela é mais uma retórica midática para manipular a opinião pública inbternacional do que uma ameaça séria à segurança regional. Hugo Chavez se sustenta graças à existência de formalidades democráticas, seria uma estupidez adotar uma estratégia claramente "suicida" pera o regime venezuelano.
Caríssimo,
Obrigado pelo elogio.
Bem lembradas as estruturas militares sob a égide da OEA. Importante ter em mente, no entanto, que há uma miríade de mecanismos não necessariamente de segurança, como os citados por você, e que podem atuar em momentos de crise na região. Pensemos no Grupo do Rio, no SELA, na Unasur, no próprio Mercosul, nas cláusulas democráticas (Ushuaia, p. ex.), entre outros.
Quanto à Venezuela, não se ignora as tentativas golpistas contra o governo de Chávez. Isso apenas reforça minha tese de que o armamentismo promovido por Caracas tem como alvo final motivos internos, e não uma possível ameaça americana ou de outra potência. Isso parece ser corroborado também pelos intentos de Chávez de criar milícias bolivarianas, armando a população contra possíveis setores "golpistas". Seja como for, o que quis deixar claro é que não penso que a compra de armamentos por Chávez seja legitimida por preocupações defensivas contra ameaças externas.
Grande abraço!
Fábio
Meu caro,
Primeiramente,gostaria de parabenizar pela excelente iniciativa de criar este blog trazendo excelentes artigos e informações pertinentes para o público que se interessa por assuntos de cunho diplomático.
Sobre o artigo "Questões de segurança na América", gostaria de acrescentar(se me permite) um fato tanto inquietante a respeito das Ilhas Malvinas. Sabe-se que em 2003o então presidente da Argentina, Nestor Kichner, alegou que a tal ilha fazia parte do território argentino e que pretenderia "brigar" pela área.Tal pronunciamento foi levado ao Comitê as Nações Unidas e parcialmente resolvidado. Sendo assim,gostaria de uma opinião sobre oque poderá ocorrer nesta área, já que a atual presidente, Crstina Kichner, compactua com as idéias do seu marido e as defendeu durante a campanha à presidencia .
Quero fazer uma resalva e dizer que esta área não aparenta trazer nenhuma instabiladade para a Américan Latina.O que pretendo nesta postagem e discutir tal assunto com pessoas competentes, pois estou colhendo informações sobre este assunto para minha monografia .
Desde já, muito grato.
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