quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE & SENZALA

Introdução


Casa Grande & Senzala é talvez o mais vasto painel da nacionalidade brasileira que já se produziu. Obra ambiciosa, empreende de forma notável a interpretação da sociedade brasileira, a explicação de como o colonizador português, vencendo todos os obstáculos que o clima, a natureza, a escassez de trabalho lhe impunham, fundou aqui uma sociedade moderna, "a maior civilização dos trópicos".

Grandiosa não apenas pelo tamanho, mas, principalmente, pelo conteúdo, que desce a um nível de descrição e detalhismo impressionante, Casa Grande & Senzala foi, em vários aspectos, uma obra seminal. Clássico da sociologia e do ensaísmo brasileiro, a obra até hoje continua despertando debates. Para muitos, a maior interpretação da sociedade brasileira de todos os tempos, ícone da nacionalidade brasileira. Para outros tantos, uma peça extremamente bem-construída do conservadorismo das elites que construíram o País e que, enfim, por meio da obra, legitimaram, no mais puro estilo maquiavélico, os meios de que lançaram mão na construção de sua obra civilizatória.

O autor

Fato é que nenhuma obra pode ser considerada de forma isolada em relação a seu autor. E Gilberto Freyre, tal como sua obra-prima, foi um homem multifacetado, e, por que não dizê-lo, ambíguo. Filho da aristocracia decadente de Pernambuco, Freyre nasceu no Recife em 1900, época em que já as usinas avançavam em detrimento dos engenhos, processo de corrosão do antigo poder do senhor de engenho brilhantemente descrito e analisado nos romances de José Lins do Rego. No final dos anos 1910, Freyre deixa o Brasil e se muda para os Estados Unidos, onde cursaria universidades no Texas e em Nova York. Foi nos Estados Unidos que iniciou sua vida intelectual e acadêmica e que conheceu as obras e os autores que o influenciariam por toda a vida - com destaque para aquele que ele mesmo chamou certa vez de mestre, o antropólogo Franz Boas.

Foi com Boas que Freyre disse haver aprendido a distinção que seria fundamental para a compreensão da sociologia freyriana: a distinção entre raça e cultura. Numa época em que o racismo, apoiado nas idéias naturalistas, ganhava força no mundo todo e se imiscuía com a política, na prática e na ideologia do imperialismo tanto quanto no florescimento das idéias (proto)fascistas, a dualidade raça-cultura era quase uma "heresia" acadêmica. E seria a esta "heresia" que Freyre se apegaria em sua empresa mais grandiosa: o entendimento do Brasil. Conservador pela origem aristocrática, mas liberal pela filiação acadêmica: eis apenas uma das muitas contradições que marcam autor e obra, Freyre e Casa Grande & Senzala.

O contexto intelectual

Publicada em dezembro de 1933 no Rio de Janeiro, Casa Grande & Senzala foi um dos três grandes ensaios que se publicaram sobre o Brasil em menos de uma década, ao lado de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda (1936), e de "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr. (1942). A grande "tríade" da interpretação do País é marcada, no entanto, por perspectivas, visões e métodos próprios. Caio Prado adota uma abordagem histórico-economicista e procura explicar a formação da sociedade brasileira como etapa e conseqüência do processo de acumulação de capital em nível global. Sérgio Buarque prefere uma interpretação sociológica, com base em uma análise das diferentes formas pelas quais se deram as empresas colonizadoras de Portugal e Espanha no Novo Mundo e as marcas que deixaram nas nacionalidades que delas se originaram. Gilberto Freyre flutua entre a sociologia e a antropologia, com preferência sensível por esta última. Para ele, a interpretação de uma sociedade exige a intepretação de seus componentes - os indivíduos -, no nível de seus comportamentos, seus valores, seus costumes, suas relações (íntimas, inclusive - se não principalmente), suas crenças, sua educação, sua vida familiar, seu lazer - em outras palavras, sua cultura.

Confrontando as idéias naturalistas, que atribuíam ao clima e às raças que se instalaram nos trópicos as mazelas de que sofria o País, Freyre posiciona-se pela cultura como elemento fundamental de interpretação da construção de uma sociedade, acima até mesmo da economia e da política ("não nos interessa [...] senão secundariamente, neste ensaio, o aspecto político ou econômico da colonização portuguesa do Brasil"). Neste sentido, Freyre era um inovador, na medida em que, de forma corajosa, rompia com uma tradição intelecutal herdada da antropologia européia, que estancava as raças como superiores e inferiores e, eivada do naturalismo e de um tipo de darwinismo deturpado, atribuía ao "determinismo do meio" a função explicativa para os fenômenos sociais - inclusive o 'sucesso' e o 'fracasso' de civilizações, povos e nações.

A dialética freyriana

A exploração de antagonismos é o método de que Freyre lança mão na construção da temática de Casa Grande & Senzala - o próprio título da obra revela o antagonismo fundamental. Pouco afeito ao rigor teórico e ao cientificismo, Freyre prefere o método ensaístico, quase literário, numa obra rica em passagens que bem poderiam ter sido extraídas de um romance. Dando rigor à fluidez de sua obra, no entanto, está o método dialético, que salta aos olhos de forma espontânea, sem que seja necessária uma análise mais aprofundada. O próprio autor a revela: a formação da sociedade brasileira é
"um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominante sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo".

Talvez não seja exagero detectar aí a influência da dialética hegeliana, cujo exemplo mais citado - pelo próprio Hegel, aliás - é a dialética do senhor e do escravo. A dialética não é apenas a confrontação de opostos, de antagonismos; é, antes, uma relação pela qual cada oposto se vê reforçado em sua natureza e essência pelo outro; é pela relação com o outro que eu me descubro a mim mesmo, tal como sou. O senhor é senhor apenas porque existe um escravo - sem o escravo, não existe senhor, e vice-versa. O interessante da dialética hegeliana é que não apenas a essência se vê reafirmada pelo oposto, mas também se vê, ela própria, negada. Assim, por exemplo, segundo Hegel, o senhor, ao precisar do escravo para reafirmar seu status de senhor, torna-se dependente do escravo, até o limite em que, pelo menos no plano ideal, torna-se escravo de seu escravo - e o escravo, senhor de seu senhor. Uma leitura de Freyre, no entanto, revela que essa segunda dimensão da dialética hegeliana está ausente. Na obra freyriana, assim como na história da formação da sociedade brasileira, os papéis de dominadores e dominados estiveram sempre claramente delimitados.

Mas se a sociedade brasileira formou-se por e com antagonismos, não teriam esses antagonismos levado ao conflito inevitável entre opostos? Freyre mesmo responde: "entre tantos antagonismos, [têm-se] condições de confraternização e mobilidade sociais peculiares ao Brasil: a miscigenação".

As três raças

O núcleo de Casa Grande & Senzala é a descrição e a análise minuciosas que Freyre faz sobre a participação do branco português, do negro escravo e do indígena ameríndio na formação da sociedade brasileira. Para Freyre, a miscigenação é o fator essencial para explicar-se o sucesso do colonizador português em sua empresa nos trópicos e a conseqüente construção da civilização brasileira. Rüdiger Bilden, em comentário sobre a obra de Freyre, afirma que o tripé fundamental da colonização do Brasil pelos portugueses foi a união entre latifúndio, escravidão e miscigenação.

A flexibilidade e a adaptabilidade da nação portuguesa foram os fatores básicos que permitiram ao colonizador "triunfar onde outros europeus falharam". Chegados ao Brasil e cientes de que, nos trópicos, a colonização exigiria a exploração da terra - diferentemente da colonização por feitorias nas Índias -, os primeiros colonizadores sofreram de uma carência que poderia provar-se fatal para o sucesso da empresa colonial: a ausência de mulheres. Afeitos ao contato com outros povos e a sua influência - árabes, africanos, europeus de origem latina ou céltica, judeus da diáspora -, os portugueses teriam desenvolvido, segundo Freyre, a quase ausência do preconceito de raça. Este foi o fator fundamental que lhes facilitaram tomar para si as mulheres indígenas com a finalidade de procriar e gerar a prole que se incumbiria de povoar, explorar, defender e expandir a terra. Foi sobre a cunhã, oferecida ao português "de pernas abertas", que o colonizador exerceu sua primeira e fundamental relação de dominação - fundamental porque seria a mulher indígena a base da família brasileira, e o mestiço (mameluco), o agente por excelência da colonização.

À mulher indígena coube estruturar a família brasileira, pelo menos nas primeiras décadas da colonização. Seu papel, obviamente, não se resumiu à reprodução. Responsável pela educação de sucessivas gerações de brasileiros, a mulher indígena, segundo Freyre, impregnou suas marcas nas relações familiares, nos hábitos, nos costumes, na alimentação, nas brincadeiras infantis, na língua - em virtualmente toda dimensão da vida individual e familiar da sociedade brasileira. O homem indígena, por sua vez, foi prontamente aliciado ou forçado ao trabalho. O ameríndio, no entanto, pouco acostumado ao trabalho sedentário da lavoura - o índio dedicava-se à caça e ao trabalho manual artesanal, mas não à agricultura, à exceção de formas muito rudimentares de cultivo - logo foi considerado como "preguiçoso" e "indolente", visão que tanto Freyre quanto Caio Prado derrubam, ao argumentar que o índio apenas não estava acostumado ao trabalho sistemático da lavoura - preferia a liberdade da caça, da navegação, do nado, da manufatura. Seu papel na colonização foi, não obstante, crucial:
"índios e mamelucos formaram uma muralha movediça, viva, que foi alargando em sentido ocidental as fronteiras coloniais do Brasil, ao mesmo tempo que defenderam, na região açucareira, os estabelecimentos agrários dos ataques de piratas estrangeiros".

No processo de colonização dos trópicos, se a cabeça foram os portugueses e os pés, os índios e mestiços, os braços foram, sem sombra de dúvida, os negros escravos. Vários foram os fatores que levaram o colonizador a optar pelo braço escravo africano: a falta de aptidão do indígena é um deles, mas talvez não o mais importante. Caio Prado afirma que os portugueses não apenas estavam afeitos à escravidão no norte da África (onde marcavam presença desde pelo menos a navegação a Ceuta, em 1415), como também tinham a oportunidade de transformá-la numa lucrativa atividade mercantil. Na lógica do mercantilismo imperialista, o tráfico de seres humanos se transformaria numa das atividades que sustentariam a colonização do País. Em mais de três séculos (1526 - 1850), mais de 4 milhões de negros aportaram na terra brasilis e aqui foram dizimados sob o fogo da fornalha, o açoite do capataz, o tronco do pelourinho - e, no caso das mulheres escravas, sob a luxúria dos senhores e a crueldade das sinhás.

Desnecessário dissertar sobre o papel do homem escravo na colonização do Brasil. Foi ele a força motriz que movimentou a economia açucareira e cafeeira responsável pela sustentação do projeto colonial. Nem é esse, tampouco, o objetivo de Freyre, uma vez que, como salientado, o autor está preocupado com os aspectos antropológicos e sociológicos da formação da sociedade brasileira, e não com os aspectos econômicos. Para compreender aqueles, importa mais considerar o papel da mulher.

A mulher escrava é uma das personagens principais da formação da família e da sociedade brasileiras. Substituindo à mulher indígena, ela passou a ser o objeto de dominação sexual do senhor, que não a exercia mais com o intuito fundamental de reproduzir-se, mas, sim, para a satisfação de sua luxúria. É fundamental compreender que, para Freyre, o papel sexual da escrava foi tão importante quanto o papel laboral do escravo. A miscigenação continua central - mas, para além dela, é necessário considerar a outra função que a escrava acabou por desempenhar na colônia brasileira, essencial para se entender a abordagem de Freyre em relação à escravidão: a mulher escrava foi o elo, a ponte entre os dois mundos dialeticamente relacionados da casa grande e da senzala.

"Intoxicação sexual"

Se para Freyre a miscigenação é o elemento central da formação da sociedade brasileira, é natural que a análise e a minuciosa descrição das relações sexuais ocupe um lugar de destaque em Casa Grande & Senzala. Para Freyre, "o ambiente em que começou a formação brasileira foi de grande intoxicação sexual". Se à mulher indígena coube a primazia na formação da família brasileira e da base humana que ajudaria a colonizar os trópicos, foi a mulher escrava negra que por três séculos se renderia ao poder e à luxúria dos senhores.

Atribuíam-se ao clima quente a licenciosidade, a depravação e a subordinação que marcaram a vida sexual da família patriarcal colonial - no melhor estilo do dito "não há pecado abaixo do Equador". Numa sociedade fortemente conservadora e pia, em que as mulheres brancas resguardavam suas "virtudes", era com negras e mulatas que os senhores satisfaziam seus desejos e impulsos. Nas palavras de Freyre, "a virtude da senhora branca apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra". Escolhida dentre as mais jovens, belas e fortes, as negras que serviam na casa grande - as mucamas - foram o elo entre o mundo do senhor e o do escravo, o vetor com o qual penetraram no seio do patriarcado aristocrático brasileiro os "modos", os "valores", o "molejo", a "doçura", a "fala", o "talento", o "banzo" dos escravos. A mucama, a ama de leite, a quituteira, a amante foram as mulheres que fecundaram, geraram e criaram a família brasileira. Brancos e brancas, sinhôs e iaiás tinham com a mulher negra momentos fundamentais de sua formação: a amamentação, a alimentação, o cuidado materno que muitas vezes era substituído pelo carinho da ama, as brincadeiras, a iniciação sexual, a vida sexual não-conjugal, as confidências, as amizades, as aventuras.

A presença do negro no interior da casa grande ensejou um ambiente que, para Freyre, teria adocicado e abrandado a crueldade inerente ao sistema escravocrata. Esse é, a bem da verdade, um dos pontos mais polêmicos da obra do sociólogo.

A presença das mulatas e dos "moleques" na casa grande teria sido fator decisivo, na visão de Freyre, para o abrandamento da relação de posse que caracterizava a relação entre senhor e escravo. Diferente do que ocorrera em outras áreas de escravidão, especialmente no sul dos Estados Unidos – que Freyre, aliás, toma como referencial para comparação em várias passagens da obra –, aqui à escravidão teria sido acrescentado um elemento de "doçura", de "proximidade", de "amolecimento" da relação senhor e escravo - cujo fundamento indiscutível é a violência. O senhor teria acolhido o negro no seio de sua família, e a proximidade desses dois mundos antagônicos da casa grande e da senzala, aliada à quase ausência de preconceito de cor na natureza do colonizador, foi o fundamento daquilo que muitos analistas da obra de Freyre identificaram como a “democracia racial”.

Não há passagem no livro que mencione o termo "democracia racial". De fato, essa foi uma construção que surge apenas na década de 1940. A idéia sobre a qual se cunhou o termo, no entanto, é da autoria de Freyre. "Democracia racial" seria um sistema de relações interpessoais no seio de uma sociedade apoiado na ausência de impedimentos psicológicos e legais à formação de uma unidade étnica por meio da miscigenação, fator central -como visto - em Casa Grande & Senzala. A mistura de raças e a suposta ausência de preconceitos raciais (mas não de preconceitos sociais), criadas e reforçadas pela inter-relação entre casa grande e senzala, teriam sido os elementos fundadores da democracia racial no Brasil. Em lugar algum do mundo - ou melhor, com povo algum do mundo que não o lusitano - teria surgido um tal padrão de relacionamentos étnicos e raciais. Em relação a essa característica basicamente portuguesa, Gilberto Freyre, em conferência pronunciada em Lisboa em 1937, afirmou que
“há, diante desse problema [...] da mestiçagem [...] uma atitude distintamente, tipicamente, caracteristicamente portuguesa, ou melhor, luso-brasileira, luso-asiática, luso-africana, que nos torna uma unidade psicológica e de cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talvez se possa dizer, sobre uma das soluções humanas de ordem biológica e ao mesmo tempo social, mais significativas do nosso tempo: a democracia social através da mistura de raças” (Freyre: 1938, 14).

Freyre posteriormente desenvolveria o conceito de "democracia étnica", que em verdade resume a idéia de "democracia racial". Vale dizer, no entanto, que o sociólogo pernambucano odesenvolve como contraponto à propagação das idéias nazi-fascistas; se uma das manifestações do totalitarismo fascista era o racismo e, no ideário nazista, a defesa da superioridade de raças, seu antídoto era a democracia "social" e "étnica", que se opunha à democracia meramente política, arremedo de regime democrático e livre. Em outra conferência, pronunciada no Recife em 1940, Freyre identifica “o imperialismo da democracia sobre trechos do Brasil ainda indecisos entre essa tradição genuinamente nossa [a "democracia étnica"] e o racismo violentamente anti-brasileiro [sic], o nazi-jesuitismo [sic], o fascismo sob disfarces sedutores, inclusive o da "hispanidade" (Freyre: 1944, 9).

O conceito de democracia étnica é apenas uma outra forma de expressão da democracia racial. O próprio Freyre utiliza este último, numa terceira conferência, pronunciada no Rio de Janeiro em 1962, quando se refere "[à] já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem" (Freyre: 1962, s/p). Seja como for, percebe-se que é uma idéia calcada na mestiçagem, prática aqui iniciada com a própria chegada do colonizador e reforçada com o entrelaçamento dos mundos da casa grande e da senzala.

A crítica moderna não poupa ataques ao que chamam de "mito da democracia racial", apontando para a realidade brasileira, em que negros e brancos não convivem exatamente sob iguais condições de vida e oportunidades de ascensão social. Se houve a mestiçagem - e foi ela elemento importante na formação da identidade nacional -, não parece ter sido ela suficiente para fundar na sociedade brasileira uma verdadeira democracia de raças e etnias...

Conclusão

Apenas a paixão de Freyre pela descrição e pelo detalhe, colocada a serviço de uma empresa tão árdua quanto apresentar um painel da formação da família e da sociedade brasileira, poderia ter rendido uma obra tão espetacular como Casa Grande & Senzala. Escrita há três quartos de século, sua atualidade é assombrosa, não apenas porque, como sociedade em constante transformação e ainda jovem - quando comparada a culturas e civilizações milenares -, o Brasil precisa conhecer-se e reconhecer-se constantemente, mas, principalmente, porque aborda questões e aspectos de nossa formação ainda não resolvidos e que, pelo contrário, continuam latentes em nossa trajetória histórica contemporânea. Pode-se ou não concordar com muitas das idéias defendidas por Freyre, como a "democracia étnica" ou "racial", o sucesso da colonização portuguesa, a civilização dos trópicos, a quase justificativa da escravidão, cujo trecho significativo merece transcrição, e cujo determinismo chama a atenção, em um autor que se contrapunha a essas idéias que, no esteio do pseudo-darwinismo e do naturalismo, estavam em voga à época:

"No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o govenro português de ter manchado, com a instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização. O meio e as circunstâncias exigiriam o escravo... Para alguns publicistas foi um erro enorme [a escravidão]. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil... Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização no Brasil pelo europeu. Só a casa grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo".

O fato, porém, é que Casa Grande & Senzala é referencial obrigatório para se conhecer o Brasil e a formação de sua sociedade. O país que temos hoje é conseqüência direta da existência necessariamente conjunta desses dois mundos, a casa grande e senzala. Para o bem e para o mal - cabe a cada um reflitir - somos herdeiros do Brasil patriarcal e escravocrata vasculhado e desvendado por Freyre. Se o clássico é aquela obra que continua referenciando o presente mesmo tempos e tempos depois de haver sido produzida, Casa Grande & Senzala é, sem dúvida, um dos maiores clássicos da literatura brasileira de todos as épocas.


N.A.: Os conceitos de “raça”, “etnia”, “negro”, “branco”, “mulato”, “mameluco” e outros termos correlacionados são usados, neste artigo, sem qualquer juízo de valor e/ou pretensão científica. Sabe-se que, na atualidade, a antropologia, a biologia e a sociologia questionam a utilidade desses conceitos como categorias descritivas e analíticas das sociedades humanas e dos indivíduos.
N.A. 2: Casa Grande & Senzala conta com dezenas de edições lançadas ao longo dessas quase oito décadas, e mais de uma foi utilizada para colher as citações aqui reproduzidas, razão pela qual optou-se por não colocar o número da página em que estão.
Outras obras de Freyre consultadas:
Freyre, Gilberto (1938). Conferências na Europa. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde.
___________ (1944). “Um engano de José Lins do Rego”. O Jornal, Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1944.
___________ (1962). O Brasil em face das Áfricas negras e mestiças. Rio de Janeiro, Federação das Associações Portuguesas.
Outras fontes:
Bresser-Pereira, Luis Carlos (2000). Relendo Casa Grande e Senzala. Paper on-line disponível em http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=548.
Guimarães, Antonio Sérgio Alfredo (2001). Democracia Racial. São Paulo, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Disponível em http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial.pdf.

4 comentários:

Anônimo disse...

Sou um grande fã da obra de Freyre. Li não só Casa Grande e Senzala, como Sobrados e Mocambos e parte de Ordem e Progresso. Acompanho várias resenhas da obra pela Internet e posso dizer: essa resenha deste site está realmente muito acima da média. A familiaridade com o texto de Freyre, a desenvoltura do autor da resenha em descrever as ambiguidades do livro, tudo aqui é de altíssimo nível.
É o melhor texto do blog.

Luciano da Rosa Muñoz disse...

Ótimo texto!

Anônimo disse...

Bom resenha!!!

Anônimo disse...

Excelente exposição! Parabéns!

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