Dando continuidade à série de artigos sobre a política externa de países selecionados, retorno, após postagens sobre a Índia, a Rússia e a França, para desta vez falar, em linhas gerais, sobre a África do Sul. Potência média emergente, a África do Sul é um país cada vez mais presente na cena regional e internacional, e tem-se transformado em parceiro importante para o Brasil. Vale a pena, por isso, conhecer um pouco mais sobre a Diplomacia do país.
Vivendo por mais de quatro décadas sob o regime do apartheid, a África do Sul foi um dos países mais isolados da comunidade internacional na segunda metade do século XX. No contexto regional, seus vizinhos temiam a agressividade do regime de Pretória, que, no plano externo, se refletia numa política externa e de defesa eminentemente devotadas às preocupações com segurança, que nem sempre se revelaram defensivas. A África do Sul chegou a desenvolver um programa nuclear para fins militares, e, em meados dos anos 90, o ex-presidente De Klerk revelou que seu país havia construído armas nucleares, às quais renunciara no início da década, tornando-se o primeiro país na História a abrir mão de seu arsenal nuclear. No contexto internacional, a África do Sul foi alvo de sanções dos mais variados tipos, especialmente no seio da Assembléia Geral das Nações Unidas, que, em 1973, aprovou a Convenção para a Supressão e a Punição ao Crime de Apartheid, bem como no âmbito das Conferências Internacionais contra o Racismo, de 1973 e 1983. O boicote à África do Sul alcançava todos os domínios - político, diplomático, militar, econômico, cultural, esportivo -, e levou aquele país a isolar-se por trás da defesa intransigente de seu regime de segregação internamente combatido e internacionalmente condenado.
Na primeira metade dos anos 90, o regime do apartheid começou a ser desmantelado, sob a liderança de De Klerk, processo que culminaria com a eleição de Mandela em 1994. A revolução, por assim dizer, que se fez na África do Sul com a adoção da democracia multi-racial e o repúdio a um regime racista se refletiu, necessariamente, em sua política externa. A partir de meados dos anos 90, a África do Sul redesenharia completamente sua inserção no mundo, com o regresso gradual à comunidade internacional. Retomaria seu assento nas Nações Unidas, seria readmitida na Commonwealth, e ingressaria no G-77, no Movimento dos Não-Alinhados (MNA), na Organização da Unidade Africana (OUA) e na Comunidade da África Austral para o Desenvolvimento (SADC - Southern Africa Development Community).
A partir de 1994/5, Pretória redefiniu radicalmente suas prioridades em política externa, abandonando as questões de segurança a um segundo plano e buscando uma inserção, regional e internacional, sustentada num tripé fundamental: direitos humanos, desenvolvimento e paz. O campo de ação prioritário da nova Diplomacia de Pretória passou a ser seu entorno regional imediato e o continente africano, sem descurar, no entanto, de uma inserção internacional universalista, apoiada no multilateralismo e na defesa do Direito Internacional.
Como potência média emergente, a África do Sul privilegia o multilateralismo por meio do engajamento em instituições internacionais. Regionalmente, procura fazer avançar seu interesse fundamental de criar um entorno imediato pacífico, seguro e próspero por meio da concertação política e da cooperação econômica, financeira e social com seus vizinhos no âmbito da União Aduaneira da África Austral (SACU - Southern Africa Customs Union) e da Comunidada da África Austral para o Desenvolvimento (SADC). A SACU foi instituída em 1969 por África do Sul, Botswana, Lesoto e Suazilândia como uma união aduaneira, com vistas a promover o comércio internacional, tanto intrabloco como extrabloco. Em 2002 negociou-se novo acordo, com a adesão da Namíbia. A SADC, por sua vez, foi criada em 1979 como uma Conferência de Coordenação entre nove Estados da África austral, que aspirava, entre seus objetivos, a fazer frente à África do Sul do apartheid e reduzir a dependência que os ligavam a Pretória. Em 1992, a Conferência foi transformada numa Comunidade, organização internacional que, reformulando seus objetivos, passava a promover a concertação política e a cooperação econômica, cultural e em matéria de infra-estrutura entre seus membros. Na atualidade, a SADC conta com quatorze membros, todos países da África austral e central, inclusive a África do Sul, um de seus mais ativos membros.
No plano continental, a África do Sul, que, ao lado de países como Nigéria, Egito e Líbia, exerce grande influência regional, é um dos expoentes da União Africana (UA - nome que a OUA passou a adotar a partir de 2001). Uma vez mais, a extensão do poder e da influência moral de Pretória se dá por meio de instituições multilaterais. Além da limitação de suas capacidades de poder, que não lhe permite uma ação de grande potência, não raro apoiada em iniciativas unilaterais, um outro motivo explica a atuação sul-africana em seu continente por meio da UA: a presença de outras potências regionais na África. Ao passo que outras regiões contam com uma ou no máximo duas potências que podem ser classificadas como potências regionais, e capazes, portanto, de estender sua ação estabilizadora, inclusive no campo da segurança, a toda a região sob sua influência, a África conta com pelo menos seis potências que detêm essa capacidade: além da África do Sul, o Egito, a Líbia (estes últimos com grande projeção sobre o mundo árabe igualmente), a Nigéria, o Quênia e, possivelmente, o Sudão (estes dois últimos, vivendo fases de convulsão interna - sucessão presidencial e questão darfuriana -, correm o risco de ver minada sua influência regional, ao menos no curto prazo). Há ainda países como o Níger, a República Democrática do Congo e a Argélia, que, embora mais comedidos em suas capacidades e atuação, concorrem para diversificar a constelação de potências regionais e sub-regionais na África.
Essa multiplicade de atores regionais e seus conflitos de interesse se refletem de forma nítida nas discussões intra-africanas sobre a reforma do Conselho de Segurança. Desde a adoção da Declaração de Harare, em 1997, a UA (então OUA) tem adotado uma posição comum em relação a uma eventual reforma do Conselho, posição cristalizada com a aprovação do Consenso de Ezulwini, em 2005. Pelo documento, a UA reivindica ao menos dois assentos permanentes com direito ao veto, cujos ocupantes deverão ser escolhidos pela própria União, e não pela Assembléia Geral, o que exige alterações nos atuais mecanismos de eleições dos membros do Conselho de Segurança. Embora nominalmente todos os 53 Estados da organização se manifestem a favor da posição comum africana, enunciada no Consenso, o fato é que alguns deles buscam formas alternativas de fazer avançar a reforma, bloqueada, entre outras coisas, pela intransigência africana com relação à prerrogativa de veto. Estados como África do Sul e Nigéria, que se acreditam com reais possibilidades de ocuparem os assentos permanentes que venham a ser alocados à África, pressionam por flexibilidade por parte da União, e travam um diálogo mais intenso com outros países extra-continentais mais diretamente interessados na reforma, especialmente os membros do G-4. Por outro lado, alguns outros Estados, desejosos de ocupar tais assentos mas sabedores de suas poucas possibilidades, estariam travando as negociações ao apegar-se deliberadamente ao Consenso como estratégia de paralisação do processo de reforma, e não como demonstração de coerência e apego à posição do continente. Estes países prefereriam, pois, uma não-reforma a uma reforma que contemplasse a África, mas que os deixasse de fora ao incluir outras potências regionais. Este é apenas um exemplo que evidencia o cisma de interesses entre as potências regionais do continente africano.
Finalmente, no plano internacional a África do Sul exibe como asset valioso sua influência moral. País que soube adotar, consolidar e manter um regime democrático e que, quase meio século depois de viver sob um regime racista, soube abraçar a multi-racialidade como valor fundamental da organização de sua sociedade, a África do Sul goza de reputação apreciada no plano internacional. Não é só: suas reformas econômicas e sociais e sua posição intransigente em defesa do desarmamentismo - cuja prova mais cabal foi a destruição unilateral de seu arsenal nuclear no início dos anos 90 - concorrem para aumentar consideravelmente o prestígio do país.
O objetivo da África do Sul é traduzir sua autoridade moral em maior participação política efetiva nos centros decisórios internacionais, especialmente nas Nações Unidas - sua ambição de lograr um assento permanente no Conselho de Segurança reflete a busca por tal objetivo, compreensível ainda mais para um país que se viu praticamente alijado da construção de regras internacionais por décadas. Busca dar sua contribuição à paz ao defender o desarmamento, e de fato atuou com grande destaque em fóruns como a Comissão de Desarmamento e em negociações sobre o banimento de minas antipessoais, o banimento do comércio ilícitio de diamantes como financiamento de conflitos e a regulamentação comércio lícito de armamento leve e armas pequenas (SALW - small arms and light weapons).
Para além dos objetivos do que se poderia chamar "high politics", as relações econômicas são fundamentais para a África do Sul. A soma de suas transações externas responde por mais de 60% de seu PIB. Reconhecendo a necessidade e o caráter estratégico do comércio internacional, a África do Sul é notavelmente engajada no fortalecimento da SACU, inclusive pela negociação de acordos comerciais com outros países e blocos (a união aduaneira já conta com um acordo comercial com a European Free Trade Area - EFTA). Ademais, no plano universal, Pretória participa ativamente do G-20 contra os subsídios agrícolas do mundo desenvolvido e sua proteção comercial.
As relações bilaterais entre o Brasil e a África do Sul são marcadas por adensamento e pela multiplicidade de temas. A ambos interessa a reforma do Conselho de Segurança, e não raro o G-4 tem mantido conversações informais com a África do Sul. Ainda no campo da segurança, Brasil e África do Sul se unem aos esforços de manutenção da paz no Atlântico Sul, sob os auspícios da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACS). Reunidos no IBAS, ambos os países atuam de modo inovador na promoção do estreitamento dos laços e da cooperação Sul-Sul, agindo não apenas com vistas à concertação política, mas, igualmente, com vistas à promoção de cooperação social, cultural e técnica. Finalmente, são parceiros nas negociações comerciais no âmbito da OMC.
Potência emergente, a África do Sul não dispõe de elementos com que contam outros países de igual status, como um grande território ou uma grande população ou, ainda, poder militar considerável. Sua capacidade de atuação, limitada pelas razões expostas, se concentra no âmbito regional e continental. A necessidade da estabilização de novos e velhos conflitos e da solução de problemas e desafios alarmantes na África, no entanto, poderá conferir-lhe uma influência global maior, se se mostrar à altura do desafio de servir como pólo de estabilidade e prosperidade no continente africano. Na atualidade, os esforços de peacekeeping e peace-making de Pretória, atuando essencialmente por meio dos mecanismos da UA, são elementos fundamentais de segurança na África. Colocada pela geografia e pela história num continente com tantas necessidades e desafios, a África do Sul poderá garantir seu lugar na política internacional do século XXI se for capaz de, atuando multilateralmente e ao amparo da legalidade, contribuir para a tão desejada prosperidade e estabilidade da África, que parece, felizmente, despontar no horizonte...
4 comentários:
Fábio, excelente texto! Se por acaso tiver mais alguma info ou referência a respeito da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZOPACS) agradeço.
Abraço,
Rafael
Rafael,
Obrigado pelo comentário. A ZOPACAS é infelizmente muito pouco estudada, apesar de ser um dos eixos políticos de inserção internacionais dos países da região, inclusive em matéria de defesa. A ZOPACAS não é uma organização internacional, mas conta com encontros ministeriais periódicos envolvendo todos os 24 Estados ribeirinhos da região. A última reunião do grupo aconteceu em 2007, em Angola.
Em português, encontrei um texto razoavelmente bom, que tenta entender a ZOPACAS sob uma perspectiva histórica recente da política externa do Brasil para a África. O link é http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/aladaa/alves.rtf.
Sugiro também que leia a resolução da AGNU que a instituiu, em 1986 - http://daccessdds.un.org/doc/RESOLUTION/GEN/NR0/495/19/IMG/NR049519.pdf?OpenElement.
Abraço,
Fábio
Nessa visualização, os links saíram 'cortados'. Para vê-los na íntegra, é só clicar no título do post ("Impressões..."), no topo à esquerda.
Mr. Chairman, sir, excelente trabalho que vocês fazem.
Permita-me um breve comentário sobre o princípio das relações entre Brasil e África do Sul: inicialmente, o Brasil hesitou em condenar o apartheid, uma vez que os governos brasileiros viam a África do Sul como "zona de contenção" para a ameaça comunista, e invocavam o princípio da "não-intervenção" (putz!) para não se manifestar contrariamente à política discriminatória sul-africana.
É isso. Sorte e, se precisar de algo sobre Brasil-África, entrem em contato.
Abraços,
Postar um comentário