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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Impressões sobre a Política Externa Francesa


É muito comum que o CACD exija conhecimentos sobre a política externa dos atores mais relevantes da política internacional. No concurso passado, houve questões sobre as relações Brasil-Japão, sobre a política externa americana para o Oriente Médio e, ainda que marginalmente, sobre a política da União Européia. Alguns dos tópicos da bibliografia sugerida para a prova de PI dizem respeito às políticas externas de países como Rússia, Alemanha, Reino Unido, China, entre outros, e suas relações com o Brasil. Pensando nisso, pretendo publicar artigos curtos sobre a política externa de países selecionados - como já foi feito, com um outro objetivo, em relação à Rússia e à Índia. Evidentemente, serão apenas sugestões de pontos importantes sobre a atuação internacional desses países, que exigirão aprofundamento em literatura especializada.

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Desde o pós-II Guerra, a política na França tem sido marcada, com variações de nuances e intensidade, pela ideologia (se assim se pode chamá-la) do gaullismo. De fato, De Gaulle foi uma das personagens mais importantes da França do século XX, e é impossível entender a política francesa sem referência ao fenômeno que o general e presidente fundou, e sobreviveu a sua queda, em 1969, e a sua morte, em 1970. As últimas eleições presidenciais francesas deram demonstrações de como o gaullismo continua a ser um elemento considerável na vida política daquele país. Na atualidade, não é tão simples dizer quais são os herdeiros políticos do gaullismo, uma vez que a figura e as idéias de De Gaulle têm sido cooptadas pela esquerda e pela direita, indistintamente. A Union pour un Mouvement Populaire (UMP), do presidente Nicolas Sarokozy, é, no entanto, o partido mais identificado com o ideário e a prática gaullistas.

No plano da política externa, a atuação de De Gaulle à frente da França, tanto no Governo Provisório (1944-6) quanto na primeira Presidência da V República (1959-69), foi marcada por um forte elemento nacionalista, que buscava reorientar o papel da França no mundo de maneira autônoma, rompendo com o pesadelo da derrota para as forças nazistas em 1940. O prestígio da atuação de De Gaulle à frente da Resistência, sediada em Londres, garantiu-lhe um lugar no concerto dos grandes que remodelaram o mundo no final da II Guerra, lugar que De Gaulle utilizou como trampolim para reprojetar a França no sistema internacional - inclusive com a concessão de um assento permanente no Conselho de Segurança, graças a gestões de Winston Churchill junto a Franklin Roosevelt. A atuação independente da França contrapunha-se ao atlantismo a que se devotava grande parte da Europa Ocidental, que buscava orientar suas relações em direção aos Estados Unidos. Paris, em contraste, contestou a supremacia americana, e, em ensaios de uma política externa independente, reafirmou a vontade de potência da França. Exemplos claros dessa atuação autônoma foram a explosão de sua primeira bomba atômica (1960); o veto à entrada do Reino Unido na CEE (1963), sob a impressão, não expressamente declarada, de que a entrada de Londres significaria maior influência dos Estados Unidos na política integracionista do continente; o reconhecimento da China Popular (1964); a condenação, em famoso discurso em Pnom Phen, do envolvimento dos Estados Unidos na Guerra do Vietnã (1966); a retirada do comando comum da OTAN (1966); o apoio à independência do Québec, no famoso discurso de De Gaulle sobre o "Québec livre" (1967); o apoio à independência do Biafra, na guerra civil nigeriana, contra a opinião de Washington e Londres (1967-70); a explosão de sua primeira bomba H, sem a assistência dos Estados Unidos (1968). A política de grandeza ("politique de grandeur") da França de De Gaulle tencionava fazer do país novamente uma grande potência, ponto de equilíbrio na disputa global entre Estados Unidos e União Soviética.

Um misto de nacionalismo e europeísmo norteou a política externa francesa nas últimas décadas. Afirmando a amizade com os Estados Unidos, a França não deixou, no entanto, de defender a autonomia em política externa, contra o que considerava a excessiva influência de Washington nos assuntos europeus. O continentalismo da França contrastava com o atlantismo do Reino Unido. No plano continental, a França engajou-se, ao lado da Alemanha, na construção da Comunidade Européia, que, na visão de Paris, deveria ser uma Europa das Nações, comunidade constituída livremente por Estados nacionais, que, evitando o federalismo e o supranacionalismo, não atentaria contra a soberania de seus Estados membros. Em linhas gerais, essas visões ainda norteiam a política externa francesa.

Grande potência global, a França não descuida de uma atuação universalista. Parece, no entanto, que suas prioridades se concentram claramente em seu entorno regional. A Europa é a grande prioridade de Paris. As relações com a Alemanha são estratégicas e de natureza fundamental para os interesses franceses. É sobre a amizade e a aliança franco-alemã, que remonta ao Tratado do Élysée (1963), que se baseia o aprofundamento do processo de integração regional. A França é uma das grandes promotoras do Tratado Constitucional, que, inicialmente assinado em Roma (2004) e rejeitado em referendo pelos franceses (2005), foi reformulado recentemente em Lisboa, e espera aprovação da Assembléia Nacional Francesa. A visão de Paris, no entanto, continua a mesma: a Europa deve ser uma união de Estados soberanos.

Desde a ascensão de Sarkozy ao poder, em 2007, a França tem, no âmbito da UE, estendido sua atuação para os países do Leste, norteada principalmente pela delicada questão da imigração. Ademais, o intuito da França é aumentar sua presença numa região que, deixando a esfera de influência da Rússia, passa a gravitar em torno de Bruxelas. Paris, no entanto, não está sozinha, uma vez que sua atuação no leste do continente se faz paralelamente à atuação de Berlim, que, desde a reunificação, tem adotado uma espécie de "neo-Ostpolitik" e intensificado sua presença política, diplomática e econômica na Europa do Leste, especialmente na Polônia, com quem a Alemanha tem tentado adminstrar relações historicamente delicadas. Uma outra questão que obiliza a diplomacia do Quai d'Orsay é a questão da Turquia: Sarkozy não tem escondido sua oposição à admissão desse país na UE.

Ainda no âmbito da UE, a França é uma das principais defensoras - se não a principal - da Política Agrícola Comum (PAC), pedra de toque da atuação da UE nas negociações comerciais. De fato, na Rodada Doha, a França já declarou que não abre mão da implementação dos mecanismos permitidos pelo direito comunitário e, mais especificamente, pela PAC. Paris é um dos pólos das negociações comerciais, ainda que subsimida sob a UE, e sua posição é crucial para um possível - e desejável - destravamento da Rodada de negociações da OMC.

Para além da UE, o entorno regional da França é sua área de atuação preferencial, aí incluídos os antigos territórios e colônias franceses. Uma iniciativa notável e ilustrativa nesse sentido foi o lançamento, por Sarkozy, do projeto da União Mediterrânea (2007). A UM reuniria todos os países mediterrâneos da Europa, da África e do Oriente Médio, e contaria com duas instituições, o Conselho Mediterrâneo e o Banco Mediterrâneo, responsáveis pela promoção de um modelo de desenvolvimento comum, a defesa de um espaço judiciário comum com o intuito de combater a corrupção e o terrorismo, e a aplicação de políticas comuns de trabalho e - note-se - imigração. A França, na realidade, já exerce grande influência sobre os países do Magreb (Marrocos, Tunísia e Argélia), influência que seria consolidada pela UM. Na margem oriental do Mediterrâneo, Paris ainda tem uma presença marcante no Líbano, com quem tem laços desde a época em que o território foi colocado sob administração francesa por mandato da Liga das Nações, referendo legal à partilha franco-britânica do Oriente Médio pelo Plano Sykes-Picot (1916).

O fundamento da UM é a criação de um espaço economicamente próspero e politicamente estável no entorno da França. As duas grandes preocupações de Paris talvez sejam o controle da imigração ilegal, especialmente a que provém das ex-colônias francesas na África do norte, e o apaziguamento da eventual frustração da Turquia por uma não admissão na UE. Será um desafio para Paris levar adiante esse projeto, não apenas pela heterogeneidade política, econômica, cultural, social e - diriam alguns - civilizacional, mas também pela diversidade de interesses envolvidos, em países de considerável influência regional como Espanha, Itália, Argélia e Líbia.

A África é também palco de atuação prioritária da França. Os laços com suas ex-colônias continuam forte, no plano econômico como no político e, mesmo, militar. Vale dizer que a França mantém, na base de acordos bilaterais, forças militares estacionadas em muitos desses países, como o Gabão, o Chade e a Costa do Marfim. Similarmente, a França comanda muitas das operações de paz que atuam no continente, seja sob a égide da ONU, seja sob iniciativa da UE, a convite dos países envolvidos. Se as relações econômicas (calcadas em grande parte nos acordos preferenciais de Lomé que unem países africanos à UE) e políticas são importantes, são as relações culturais que a França utiliza como elemento de atuação na África, especialmente a partir da Organização Internacional da Francofonia. A OIF reúne 55 Estados e governos membros (inclusive o Québec, Nouveau Brunswick e a Comunidade Francófona Belga), e tem em sua agenda não apenas a difusão da língua francesa, mas, principalmente, a cooperação política entre seus membros, orquestrada pela França. Os laços com suas ex-colônias não se limitam à África: a França tem uma forte influência no Líbano, onde comanda, a propósito, a UNIFIL (United Nations Interim Force in Lebanon).

Para além do Mediterrâneo e da África, a atuação da política externa francesa é marcada pela universalização, por meio de sua presença nos grandes mecanismos de governança global. A França é membro permanente do Conselho de Segurança e membro do G-8. Pautada pela defesa do multilateralismo - compreensível para uma potência que pretende desempenhar um papel cada vez mais relevante na cena internacional -, a França tem sido uma das grandes defensoras da reforma das principais instâncias decisórias internacionais. Apóia o G-4 na defesa da reforma do Conselho de Segurança pela adição de seis novos membros permanentes; apóia, da mesma forma, a transformação do G-8 em G-13, com a inclusão de Brasil, África do Sul, China, Índia e México. Retomando o elemento autonomista do gaullismo, Paris tem a noção de que a atuação da França como grande potência na política internacional depende da mitigação do poder dos Estados Unidos, o que se conseguiria, por essa perspectiva, pela multilateralização efetiva dos centros decisórios internacionais.

Quanto às relações com os Estados Unidos, a França de Sarkozy parece ser mais atlantista do que a França de Chirac. Em visita a Washington, Sarkozy afirmou que a França é amiga dos Estados Unidos, mas fez a ressalva de que amizade e aliança não significam alinhamento. Paris parece querer ocupar na Europa o papel de aliado preferencial dos Estados Unidos, preenchendo o vácuo que, de certa forma, criou-se em Londres com a saída de Tony Blair do 10 Downing Street.

Estas impressões tentam resumir, em linhas gerais, a complexa política externa francesa. Complexa porque orientada pelo eixo europeu, ao mesmo tempo em que recobra aos poucos o eixo atlântico, sem deixar de ser autonomista e nacionalista. Complexa porque projeta uma grande potência limitada em sua capacidade de atuação pela própria estrutura uni-multipolar (para usar um útil conceito de Samuel Huntington) do sistema internacional. Complexa porque lida com um entorno potencialmente problemático, especialmente pelo flagelo do terrorismo, que tem atuado no Marrocos e na Argélia. Complexa porque sustenta um dos pilares da UE num momento de relativa parálise da integração do continente, desde a rejeição do Tratado Constitucional. Complexa, enfim, porque defende a reforma das estruturas internacionais ao mesmo tempo em que pretende resguardar o poderio e a influência de uma grande potência. A França é um ator-chave no sistema internacional, e precisa ser entendida, para além das simplificações - úteis, mas essencialmente limitadas - em sua própria complexidade.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

A independência de Kosovo - questões sobre autodeterminação dos povos, soberania estatal e reconhecimento de Estados

A proximidade da declaração de independência do Kosovo, anunciada por seu Parlamento "para os próximos dias", suscita simultaneamente um medo político e um debate teórico. O medo se concentra especialmente naqueles países que se poderiam chamar "multinacionais" ou "multiétnicos", como a Espanha, a Rússia e, mesmo, o Reino Unido. Para os governos destes países, a independência do Kosovo, claramente apoiada na distinção étnica entre a maioria de origem albanesa e a minoria sérvia que habitam a província, poderia legitimar as reclamações e ações secessionistas de grupos no País Basco, na Catalunha, na Escócia, na Chechênia, na Valônia, em Flandres, e em tantos outros lugares na Europa, rompendo com o quase-dogma da inviolabilidade das fronteiras do continente, estabelecido no pós-guerra e confirmado pela Ata de Helsinque (1975). O debate teórico, por sua vez, aborda uma questão complicada: como conciliar o direito à autodeterminação dos povos e a soberania estatal e sua inviolabilidade territorial?

Comecemos pelo debate teórico. Oficialmente, o termo "autodeterminação dos povos" é mencionado pela primeira vez na Carta das Nações Unidas, em seus artigos 1º, parágrafo 2, e 55. Em ambos os excertos, é mencionado como "the principle of equal rights and self-determination of peoples", princípio que deveria balizar o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações ("to develop friendly relations among nations"). Note-se, no entanto, que a Carta menciona o princípio da autodeterminação, e não o direito à autodeterminação. No entender de juristas que analisaram os "travaux préparatoires" da Carta das Nações Unidas, inclusive Hans Kelsen, não era intenção dos autores do documento estabelecer um direito à autodeterminação, mas, antes, um princípio de ação política, um dogma das relações inter-estatais, indissociável dos direitos iguais. Ora, naquele momento o que se pretendia era regular as relações entre Estados e, embora então já se pudesse falar de outros sujeitos de Direito Internacional, ainda era o Estado o sujeito por excelência das normas jurídicas internacionais. Não caberia, pois - a interpretação é do próprio Kelsen - falar em direito de povos, mas, sim, de Estados. Segundo Kelsen, a utilização dos termos "nações" e "povos" na Carta responde a uma finalidade semântica, com o intuito de conotar a fraternidade dos povos, dos seres humanos, da humanidade, alijando de certa forma a frieza das relações meramente políticas, entre Estados, e não a uma finalidade jurídica. O próprio nome da Organização o afirma: apesar de ser Nações Unidas (inclusive porque "Organização dos Estados Unidos" seria absolutamente inapropriado, por motivos óbvios...), os membros da organização são Estados, e não "nações" e "povos", termos que, ademais, sofrem de uma notável imprecisão conceitual. "Nações" e "povos" querem dizer, pois, na Carta da ONU, "Estados". O princípio da autodeterminação dos povos, dessa forma, pode ser interpretado, na Carta das Nações Unidas, como o princípio da soberania estatal, o princípio de que cada Estado é responsável por suas decisões internas e externas, e não admite intervenção ou interferência.

A noção de que a autodeterminação dos povos era um direito inerente a cada povo remonta às idéias liberais e iluministas do século XVIII. Deve-se dizer, a propósito, que a Revolução Francesa não consagrou esse direito - as idéias e ações revolucionárias baseavam-se no entendimento de que a nação era a fonte fundamental de legitimidade política, e não poderia ela ser ameaçada por desejos autonomistas ou secessionistas de grupos minoritários dentro dela. Tal como o conhecemos na atualidade, o direito à autodeterminação é uma construção político-jurídica do século XIX e, especialmente, do século XX. Seja como for, a idéia já existia, e a Carta das Nações Unidas rompe com ela, ao não reconhecer explicitamente a autodeterminação como direito dos povos, mas, sim, como princípio de ação estatal no plano das relações internacionais.

Serão as próprias Nações Unidas, não obstante, que reformarão sua idéia original cristalizada na Carta de San Francisco. Em dezembro de 1960, a Assembléia Geral aprova a famosa resolução 1514 (XV), intitulada "Declaration on the Granting of Independence to Colonial Countries and Peoples", fruto incontestável da luta anticolonialista, que atinge seu ápice no próprio ano de 1960, com a independência de mais de uma dúzia de ex-colônias européias na África. A resolução faz referência, no segundo parágrafo de sua consideranda, ao mesmo "princípio dos direitos iguais e da autodeterminação dos povos". A inovação, no entanto, não tarda a vir: no segundo parágrafo operacional, afirma categoricamente que "todos os povos têm o direito à autodeterminação; em virtude desse direito, determinam livremente seu status político e perseguem livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural". Embora não tenha sido a primeira resolução a estabelecer a autodeterminação como direito dos povos (a pioneira foi a resolução 421 D (V)), seu caráter universalizante, bem como o contexto histórico em que foi produzida, conferem-na a simbologia de marco no tratamento, pelas Nações Unidas, da questão da autodeterminação.

Deve-se entender "povos", mais uma vez, com o significado de "Estados"? A opinião de juristas é: não. Pode-se chegar a essa conclusão analisando a resolução como um todo. O primeiro parágrafo declara que "a sujeição de povos [peoples] à subjugação, dominação ou exploração estrangeira é contrária à Carta das Nações Unidas". Embora possa haver casos em que um Estado, submetido a uma potência estrangeira, resguarde - ao menos formalmente - sua soberania, é contra-intuitivo que uma comunidade política não-independente, por força de dominação estrangeira, continue sendo um Estado - faltar-lhe-ia o elemento da soberania. Mais adiante, em seu parágrafo quinto, a resolução afirma que "medidas imediatas deverão ser tomadas, em Territórios sob Tutela e sem Governo Próprio [Trust and Non-Self-Governing Territories] ou em todo outro território que ainda não alcançou a independência, para transferir todos os poderes aos povos desses territórios". Vê-se com clareza que a menção é feita aos povos que não vivem em um Estado soberano - povos coloniais, em outras palavras. A resolução 1514 estabelece, portanto, um direito dos povos, e não dos Estados.

O direito à autodeterminação se estende apenas aos povos sob regime colonial? Uma vez mais, apelemos aos juristas, cuja resposta é: não. A resolução 1514 estabelece claramente que "todos os povos têm o direito inalienável à completa liberdade" (consideranda). Evidentemente, especial atenção foi dada aos povos colonizados, o que se justifica pelo momento histórico e político que se vivia naquele início dos anos 1960. Não foi intenção da Assembléia Geral, no entanto, restringir o alcance do direito declarado. O direito à autodeterminação é inalienável a todos os povos.

Uma confusão muito comum que se faz é a suposta complementaridade entre autodeterminação e statehood (na falta de um termo em português), segundo a qual o exercício da autodeterminação de um povo implica a criação de um Estado para aquele povo. É o que se tem visto, a propósito, na questão da independência de Kosovo. Curioso é que esta é uma confusão difundida inclusive entre estadistas - o que legitima o medo que a independência kosovar tem disseminado. O Direito Internacional, no entanto, tem uma resposta a esse receio... Examinemos, inicialmente, o que diz a resolução 1514.

Em seu parágrafo sexto, declara a resolução que "qualquer tentativa com vistas à ruptura parcial ou total da unidade nacional e da integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas". Em vez da resposta, tem-se um imbróglio em sua totalidade: como se pode compatibilizar a autodeterminação dos povos, que, no limite, poderia implicar a secessão de um povo de um Estado original e a criação de um novo Estado, com a soberania estatal e a integridade territorial e nacional? O que implica, de fato, autodeterminar-se?

Em 24 de outubro de 1970, a Assembléia Geral aprovou a resolução 2625 (XXV), "Declaration on Principles of International Law concerning Friendly Relations and Co-operation among States in accordance with the Charter of the United Nations". Reafirmando as provisões da resolução 1514, declara que "em virtude do princípio dos direitos iguais e da autodeterminação dos povos consagrado na Carta das Nações Unidas, todos os povos têm o direito de determinar livremente, sem interferência externa, seu status político e de perseguir seu desenvolvimento econômico, social e cultural, e todo Estado tem o dever de respeitar esse direito de acordo com as provisões da Carta".

A resposta à confusão (se se pode dizer assim) criada pela resolução 1514 vem em seguida, como uma clara limitação do exercício do direito à autodeterminação: o sexto parágrafo da resolução declara que "nada nos parágrafos anteriores pode ser interpretado como autorizando ou encorajando qualquer ação que dismembre, total ou parcialmente, a integridade territorial ou a unidade política de Estados independentes e soberanos que observem o princípio dos direitos iguais e da autodeterminação dos povos como acima descritos e que possuam, portanto, um governo que represente a totalidade do povo do território, sem distinção de raça, credo ou cor (1)."

Como todo direito, o exercício do direito à autodeterminação encontra limites no exercício de outros direitos titulados por outras pessoas jurídicas. Conforme amplamente reconhecido pelo Direito Internacional, o Estado tem o direito a defender sua soberania, sua independência e sua integridade territorial. Da mesma forma, todo povo tem o direito de decidir livremente sobre seu estatuto político no âmbito do Estado em que viva. Este é o direito à autodeterminação: o direito à autonomia, o direito de decidir sobre si mesmo. Ora, o exercício da autonomia não implica necessariamente o exercício da secessão, do separatismo. Cada povo é autônomo sempre que puder participar plenamente, e em pé de igualdade com outros povos que eventualmente convivam com ele no território do mesmo Estado, na formulação da vontade política nacional - e não se encontrou melhor forma de se fazê-lo senão pelo exercício da democracia. Sua autonomia se exerce plenamente no processo democrático, principalmente pelo voto, no âmbito de uma sociedade em que se reconheçam os direitos fundamentais dos indivíduos e das coletividades (a propósito, o direito à autodeterminação é reconhecido como direito fundamental pelos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966). Dessa forma, um povo só tem o direito à secessão quando, teoricamente, se lhe nega o exercício da autodeterminação - em outras palavras, quando não é politicamente representado no Estado em que vive e/ou quando esse Estado não lhe garante seus direitos, com base em discriminações ilegais de qualquer natureza.

Como reconhecido pela doutrina, a ilegalidade não gera direitos. Assim, dessa forma, se um povo empreender a separação territorial e a criação de um outro Estado de forma ilegal, em violação ao próprio princípio da autodeterminação, sua situação, do ponto de vista do Direito Internacional, é ilegal. O que isso implica? Implica que esse novo Estado terá dificuldades em ser reconhecido internacionalmente por outros Estados. Aqui entramos num outro capítulo, profundamente ligado ao processo de independência do Kosovo, e tema importantíssimo no Direito Internacional: o reconhecimento de Estados.

Existem basicamente duas correntes teóricas quanto ao reconhecimento de Estados. Para a primeira delas, o reconhecimento é um ato atributivo, pelo qual terceiros Estados atribuem àquele que é reconhecido o caráter de verdadeiro Estado. Segundo essa corrente, um Estado só existe quando reconhecido por pelo menos um outro Estado. Para a segunda - muito mais aceita na atualidade -, o ato de reconhecimento é declarativo, i. e., um Estado apenas declara que reconhece em outra comunidade política o caráter de Estado. A implicação óbvia é que um Estado, para existir, não precisa ser reconhecido pelos demais; a partir do momento em que reúne os elementos fundamentais para constituir-se como Estado - povo, território, soberania (e, por conseqüência, governo independente) -, passa a ser um Estado, titular de direitos e deveres que independem do relacionamento com outros Estados (como o direito de defender sua soberania e o dever de não-intervenção).

É evidente, no entanto, que o reconhecimento de Estado - ato jurídico por excelência - tem motivações políticas. Para além disso, qualquer Estado que não seja reconhecido pelos demais fica impossibilitado de exercer plenamente uma série de competências nas relações internacionais: não envia nem recebe legações, não participa de organizações internacionais, seus agentes não gozam de imunidades e privilégios, não celebra tratados etc. Sua atuação política é, enfim, extremamente limitada. Todo Estado almeja o reconhecimento pela comunidade internacional, ainda que dele prescinda para existir.

O medo que rodeia a provável independência de Kosovo é justificado do ponto de vista político, mas não do jurídico. A situação de Kosovo é peculiar: ali ocorreu mais do que um conflito; houve, isso sim, um crime contra a humanidade, reconhecido pela comunidade internacional. Claramente, um povo - kosovares de origem albanesa - foi não apenas alijado da plena participação na formação da vontade política nacional e, portanto, foi impedido de exercer seu direito à autodeterminação, mas foi também alvo de um genocídio. Sob essas circunstâncias, é plenamente aceitável, segundo o Direito Internacional, que Kosovo deseje constituir-se como um Estado à parte, separando-se da República Sérvia.

Kosovo tem os elementos jurídicos e políticos para fazê-lo. Tem o direito ao exercício de sua autodeterminação, e conta com o apoio das Nações Unidas, dos Estados Unidos e da União Européia. Washington e Bruxelas prometeram reconhecer Kosovo, o que é um asset político poderoso para um Estado recém-constituído, que, ademais, terá de enfrentar a oposição da Sérvia e da Rússia.

O mesmo não se pode dizer de outras regiões em que, por toda a Europa, convivem sociedades "multiétnicas" e "multinacionais". Espanha, Reino Unido, Bélgica, Suíça, entre outros, são democracias consolidadas, em que seus povos constituintes (bascos, catalães, valões, flamengos, romanches, escoceses, ingleses...) participam do processo político democrático e são titulares de direitos amplamente reconhecidos e defendidos. É evidente que nacionalismo e identidades nacionais são assuntos complicados, que nem sempre se enquadram no âmbito das normas jurídicas. O fato é, no entanto, que o Direito Internacional não legitimaria a independência de uma dessas regiões, a menos que empreendida em livre acordo com o Estado cujo território seria desmembrado. Não parece haver espaço para um efeito dominó na Europa, caso Kosovo declare sua independência.

A independência de Kosovo é legítima do ponto de vista do Direito Internacional. Os kosovares - assim como os sérvios - têm o direito de definir seu futuro e de deixar para trás as marcas de um passado conturbado. Chegou a hora de os Bálcãs superarem seus seculares ressentimentos e de, aprendendo com a Europa Ocidental, amalgamarem seus esforços na construção de um futuro política e economicamente promissor.


(1) Vale a pena reproduzir o texto original: "Nothing in the foregoing paragraphs shall be construed as authorizing or encouraging any action which would dismember or impair, totally or in part, the territorial integrity and political unity of sovereign and independent States conducting themselves in compliance with the principle of equal rights and self-determination of peoples as described above and thus possessed of a government representing the whole people belonging to the territory without distinction as to race, creed or colour".

Para uma discussão sobre a evolução do tratamento da autodeterminação no âmbito das Nações Unidas, v. Duursma, Jorri C. Fragmentation and the International Relations of Micro-States: self-determination and statehood. Cambridge: CUP, 1996, Chapter I, Right of self-determination.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD - 3) CASA GRANDE & SENZALA

Introdução


Casa Grande & Senzala é talvez o mais vasto painel da nacionalidade brasileira que já se produziu. Obra ambiciosa, empreende de forma notável a interpretação da sociedade brasileira, a explicação de como o colonizador português, vencendo todos os obstáculos que o clima, a natureza, a escassez de trabalho lhe impunham, fundou aqui uma sociedade moderna, "a maior civilização dos trópicos".

Grandiosa não apenas pelo tamanho, mas, principalmente, pelo conteúdo, que desce a um nível de descrição e detalhismo impressionante, Casa Grande & Senzala foi, em vários aspectos, uma obra seminal. Clássico da sociologia e do ensaísmo brasileiro, a obra até hoje continua despertando debates. Para muitos, a maior interpretação da sociedade brasileira de todos os tempos, ícone da nacionalidade brasileira. Para outros tantos, uma peça extremamente bem-construída do conservadorismo das elites que construíram o País e que, enfim, por meio da obra, legitimaram, no mais puro estilo maquiavélico, os meios de que lançaram mão na construção de sua obra civilizatória.

O autor

Fato é que nenhuma obra pode ser considerada de forma isolada em relação a seu autor. E Gilberto Freyre, tal como sua obra-prima, foi um homem multifacetado, e, por que não dizê-lo, ambíguo. Filho da aristocracia decadente de Pernambuco, Freyre nasceu no Recife em 1900, época em que já as usinas avançavam em detrimento dos engenhos, processo de corrosão do antigo poder do senhor de engenho brilhantemente descrito e analisado nos romances de José Lins do Rego. No final dos anos 1910, Freyre deixa o Brasil e se muda para os Estados Unidos, onde cursaria universidades no Texas e em Nova York. Foi nos Estados Unidos que iniciou sua vida intelectual e acadêmica e que conheceu as obras e os autores que o influenciariam por toda a vida - com destaque para aquele que ele mesmo chamou certa vez de mestre, o antropólogo Franz Boas.

Foi com Boas que Freyre disse haver aprendido a distinção que seria fundamental para a compreensão da sociologia freyriana: a distinção entre raça e cultura. Numa época em que o racismo, apoiado nas idéias naturalistas, ganhava força no mundo todo e se imiscuía com a política, na prática e na ideologia do imperialismo tanto quanto no florescimento das idéias (proto)fascistas, a dualidade raça-cultura era quase uma "heresia" acadêmica. E seria a esta "heresia" que Freyre se apegaria em sua empresa mais grandiosa: o entendimento do Brasil. Conservador pela origem aristocrática, mas liberal pela filiação acadêmica: eis apenas uma das muitas contradições que marcam autor e obra, Freyre e Casa Grande & Senzala.

O contexto intelectual

Publicada em dezembro de 1933 no Rio de Janeiro, Casa Grande & Senzala foi um dos três grandes ensaios que se publicaram sobre o Brasil em menos de uma década, ao lado de "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda (1936), e de "Formação do Brasil Contemporâneo", de Caio Prado Jr. (1942). A grande "tríade" da interpretação do País é marcada, no entanto, por perspectivas, visões e métodos próprios. Caio Prado adota uma abordagem histórico-economicista e procura explicar a formação da sociedade brasileira como etapa e conseqüência do processo de acumulação de capital em nível global. Sérgio Buarque prefere uma interpretação sociológica, com base em uma análise das diferentes formas pelas quais se deram as empresas colonizadoras de Portugal e Espanha no Novo Mundo e as marcas que deixaram nas nacionalidades que delas se originaram. Gilberto Freyre flutua entre a sociologia e a antropologia, com preferência sensível por esta última. Para ele, a interpretação de uma sociedade exige a intepretação de seus componentes - os indivíduos -, no nível de seus comportamentos, seus valores, seus costumes, suas relações (íntimas, inclusive - se não principalmente), suas crenças, sua educação, sua vida familiar, seu lazer - em outras palavras, sua cultura.

Confrontando as idéias naturalistas, que atribuíam ao clima e às raças que se instalaram nos trópicos as mazelas de que sofria o País, Freyre posiciona-se pela cultura como elemento fundamental de interpretação da construção de uma sociedade, acima até mesmo da economia e da política ("não nos interessa [...] senão secundariamente, neste ensaio, o aspecto político ou econômico da colonização portuguesa do Brasil"). Neste sentido, Freyre era um inovador, na medida em que, de forma corajosa, rompia com uma tradição intelecutal herdada da antropologia européia, que estancava as raças como superiores e inferiores e, eivada do naturalismo e de um tipo de darwinismo deturpado, atribuía ao "determinismo do meio" a função explicativa para os fenômenos sociais - inclusive o 'sucesso' e o 'fracasso' de civilizações, povos e nações.

A dialética freyriana

A exploração de antagonismos é o método de que Freyre lança mão na construção da temática de Casa Grande & Senzala - o próprio título da obra revela o antagonismo fundamental. Pouco afeito ao rigor teórico e ao cientificismo, Freyre prefere o método ensaístico, quase literário, numa obra rica em passagens que bem poderiam ter sido extraídas de um romance. Dando rigor à fluidez de sua obra, no entanto, está o método dialético, que salta aos olhos de forma espontânea, sem que seja necessária uma análise mais aprofundada. O próprio autor a revela: a formação da sociedade brasileira é
"um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O católico e o herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominante sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo".

Talvez não seja exagero detectar aí a influência da dialética hegeliana, cujo exemplo mais citado - pelo próprio Hegel, aliás - é a dialética do senhor e do escravo. A dialética não é apenas a confrontação de opostos, de antagonismos; é, antes, uma relação pela qual cada oposto se vê reforçado em sua natureza e essência pelo outro; é pela relação com o outro que eu me descubro a mim mesmo, tal como sou. O senhor é senhor apenas porque existe um escravo - sem o escravo, não existe senhor, e vice-versa. O interessante da dialética hegeliana é que não apenas a essência se vê reafirmada pelo oposto, mas também se vê, ela própria, negada. Assim, por exemplo, segundo Hegel, o senhor, ao precisar do escravo para reafirmar seu status de senhor, torna-se dependente do escravo, até o limite em que, pelo menos no plano ideal, torna-se escravo de seu escravo - e o escravo, senhor de seu senhor. Uma leitura de Freyre, no entanto, revela que essa segunda dimensão da dialética hegeliana está ausente. Na obra freyriana, assim como na história da formação da sociedade brasileira, os papéis de dominadores e dominados estiveram sempre claramente delimitados.

Mas se a sociedade brasileira formou-se por e com antagonismos, não teriam esses antagonismos levado ao conflito inevitável entre opostos? Freyre mesmo responde: "entre tantos antagonismos, [têm-se] condições de confraternização e mobilidade sociais peculiares ao Brasil: a miscigenação".

As três raças

O núcleo de Casa Grande & Senzala é a descrição e a análise minuciosas que Freyre faz sobre a participação do branco português, do negro escravo e do indígena ameríndio na formação da sociedade brasileira. Para Freyre, a miscigenação é o fator essencial para explicar-se o sucesso do colonizador português em sua empresa nos trópicos e a conseqüente construção da civilização brasileira. Rüdiger Bilden, em comentário sobre a obra de Freyre, afirma que o tripé fundamental da colonização do Brasil pelos portugueses foi a união entre latifúndio, escravidão e miscigenação.

A flexibilidade e a adaptabilidade da nação portuguesa foram os fatores básicos que permitiram ao colonizador "triunfar onde outros europeus falharam". Chegados ao Brasil e cientes de que, nos trópicos, a colonização exigiria a exploração da terra - diferentemente da colonização por feitorias nas Índias -, os primeiros colonizadores sofreram de uma carência que poderia provar-se fatal para o sucesso da empresa colonial: a ausência de mulheres. Afeitos ao contato com outros povos e a sua influência - árabes, africanos, europeus de origem latina ou céltica, judeus da diáspora -, os portugueses teriam desenvolvido, segundo Freyre, a quase ausência do preconceito de raça. Este foi o fator fundamental que lhes facilitaram tomar para si as mulheres indígenas com a finalidade de procriar e gerar a prole que se incumbiria de povoar, explorar, defender e expandir a terra. Foi sobre a cunhã, oferecida ao português "de pernas abertas", que o colonizador exerceu sua primeira e fundamental relação de dominação - fundamental porque seria a mulher indígena a base da família brasileira, e o mestiço (mameluco), o agente por excelência da colonização.

À mulher indígena coube estruturar a família brasileira, pelo menos nas primeiras décadas da colonização. Seu papel, obviamente, não se resumiu à reprodução. Responsável pela educação de sucessivas gerações de brasileiros, a mulher indígena, segundo Freyre, impregnou suas marcas nas relações familiares, nos hábitos, nos costumes, na alimentação, nas brincadeiras infantis, na língua - em virtualmente toda dimensão da vida individual e familiar da sociedade brasileira. O homem indígena, por sua vez, foi prontamente aliciado ou forçado ao trabalho. O ameríndio, no entanto, pouco acostumado ao trabalho sedentário da lavoura - o índio dedicava-se à caça e ao trabalho manual artesanal, mas não à agricultura, à exceção de formas muito rudimentares de cultivo - logo foi considerado como "preguiçoso" e "indolente", visão que tanto Freyre quanto Caio Prado derrubam, ao argumentar que o índio apenas não estava acostumado ao trabalho sistemático da lavoura - preferia a liberdade da caça, da navegação, do nado, da manufatura. Seu papel na colonização foi, não obstante, crucial:
"índios e mamelucos formaram uma muralha movediça, viva, que foi alargando em sentido ocidental as fronteiras coloniais do Brasil, ao mesmo tempo que defenderam, na região açucareira, os estabelecimentos agrários dos ataques de piratas estrangeiros".

No processo de colonização dos trópicos, se a cabeça foram os portugueses e os pés, os índios e mestiços, os braços foram, sem sombra de dúvida, os negros escravos. Vários foram os fatores que levaram o colonizador a optar pelo braço escravo africano: a falta de aptidão do indígena é um deles, mas talvez não o mais importante. Caio Prado afirma que os portugueses não apenas estavam afeitos à escravidão no norte da África (onde marcavam presença desde pelo menos a navegação a Ceuta, em 1415), como também tinham a oportunidade de transformá-la numa lucrativa atividade mercantil. Na lógica do mercantilismo imperialista, o tráfico de seres humanos se transformaria numa das atividades que sustentariam a colonização do País. Em mais de três séculos (1526 - 1850), mais de 4 milhões de negros aportaram na terra brasilis e aqui foram dizimados sob o fogo da fornalha, o açoite do capataz, o tronco do pelourinho - e, no caso das mulheres escravas, sob a luxúria dos senhores e a crueldade das sinhás.

Desnecessário dissertar sobre o papel do homem escravo na colonização do Brasil. Foi ele a força motriz que movimentou a economia açucareira e cafeeira responsável pela sustentação do projeto colonial. Nem é esse, tampouco, o objetivo de Freyre, uma vez que, como salientado, o autor está preocupado com os aspectos antropológicos e sociológicos da formação da sociedade brasileira, e não com os aspectos econômicos. Para compreender aqueles, importa mais considerar o papel da mulher.

A mulher escrava é uma das personagens principais da formação da família e da sociedade brasileiras. Substituindo à mulher indígena, ela passou a ser o objeto de dominação sexual do senhor, que não a exercia mais com o intuito fundamental de reproduzir-se, mas, sim, para a satisfação de sua luxúria. É fundamental compreender que, para Freyre, o papel sexual da escrava foi tão importante quanto o papel laboral do escravo. A miscigenação continua central - mas, para além dela, é necessário considerar a outra função que a escrava acabou por desempenhar na colônia brasileira, essencial para se entender a abordagem de Freyre em relação à escravidão: a mulher escrava foi o elo, a ponte entre os dois mundos dialeticamente relacionados da casa grande e da senzala.

"Intoxicação sexual"

Se para Freyre a miscigenação é o elemento central da formação da sociedade brasileira, é natural que a análise e a minuciosa descrição das relações sexuais ocupe um lugar de destaque em Casa Grande & Senzala. Para Freyre, "o ambiente em que começou a formação brasileira foi de grande intoxicação sexual". Se à mulher indígena coube a primazia na formação da família brasileira e da base humana que ajudaria a colonizar os trópicos, foi a mulher escrava negra que por três séculos se renderia ao poder e à luxúria dos senhores.

Atribuíam-se ao clima quente a licenciosidade, a depravação e a subordinação que marcaram a vida sexual da família patriarcal colonial - no melhor estilo do dito "não há pecado abaixo do Equador". Numa sociedade fortemente conservadora e pia, em que as mulheres brancas resguardavam suas "virtudes", era com negras e mulatas que os senhores satisfaziam seus desejos e impulsos. Nas palavras de Freyre, "a virtude da senhora branca apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra". Escolhida dentre as mais jovens, belas e fortes, as negras que serviam na casa grande - as mucamas - foram o elo entre o mundo do senhor e o do escravo, o vetor com o qual penetraram no seio do patriarcado aristocrático brasileiro os "modos", os "valores", o "molejo", a "doçura", a "fala", o "talento", o "banzo" dos escravos. A mucama, a ama de leite, a quituteira, a amante foram as mulheres que fecundaram, geraram e criaram a família brasileira. Brancos e brancas, sinhôs e iaiás tinham com a mulher negra momentos fundamentais de sua formação: a amamentação, a alimentação, o cuidado materno que muitas vezes era substituído pelo carinho da ama, as brincadeiras, a iniciação sexual, a vida sexual não-conjugal, as confidências, as amizades, as aventuras.

A presença do negro no interior da casa grande ensejou um ambiente que, para Freyre, teria adocicado e abrandado a crueldade inerente ao sistema escravocrata. Esse é, a bem da verdade, um dos pontos mais polêmicos da obra do sociólogo.

A presença das mulatas e dos "moleques" na casa grande teria sido fator decisivo, na visão de Freyre, para o abrandamento da relação de posse que caracterizava a relação entre senhor e escravo. Diferente do que ocorrera em outras áreas de escravidão, especialmente no sul dos Estados Unidos – que Freyre, aliás, toma como referencial para comparação em várias passagens da obra –, aqui à escravidão teria sido acrescentado um elemento de "doçura", de "proximidade", de "amolecimento" da relação senhor e escravo - cujo fundamento indiscutível é a violência. O senhor teria acolhido o negro no seio de sua família, e a proximidade desses dois mundos antagônicos da casa grande e da senzala, aliada à quase ausência de preconceito de cor na natureza do colonizador, foi o fundamento daquilo que muitos analistas da obra de Freyre identificaram como a “democracia racial”.

Não há passagem no livro que mencione o termo "democracia racial". De fato, essa foi uma construção que surge apenas na década de 1940. A idéia sobre a qual se cunhou o termo, no entanto, é da autoria de Freyre. "Democracia racial" seria um sistema de relações interpessoais no seio de uma sociedade apoiado na ausência de impedimentos psicológicos e legais à formação de uma unidade étnica por meio da miscigenação, fator central -como visto - em Casa Grande & Senzala. A mistura de raças e a suposta ausência de preconceitos raciais (mas não de preconceitos sociais), criadas e reforçadas pela inter-relação entre casa grande e senzala, teriam sido os elementos fundadores da democracia racial no Brasil. Em lugar algum do mundo - ou melhor, com povo algum do mundo que não o lusitano - teria surgido um tal padrão de relacionamentos étnicos e raciais. Em relação a essa característica basicamente portuguesa, Gilberto Freyre, em conferência pronunciada em Lisboa em 1937, afirmou que
“há, diante desse problema [...] da mestiçagem [...] uma atitude distintamente, tipicamente, caracteristicamente portuguesa, ou melhor, luso-brasileira, luso-asiática, luso-africana, que nos torna uma unidade psicológica e de cultura fundada sobre um dos acontecimentos, talvez se possa dizer, sobre uma das soluções humanas de ordem biológica e ao mesmo tempo social, mais significativas do nosso tempo: a democracia social através da mistura de raças” (Freyre: 1938, 14).

Freyre posteriormente desenvolveria o conceito de "democracia étnica", que em verdade resume a idéia de "democracia racial". Vale dizer, no entanto, que o sociólogo pernambucano odesenvolve como contraponto à propagação das idéias nazi-fascistas; se uma das manifestações do totalitarismo fascista era o racismo e, no ideário nazista, a defesa da superioridade de raças, seu antídoto era a democracia "social" e "étnica", que se opunha à democracia meramente política, arremedo de regime democrático e livre. Em outra conferência, pronunciada no Recife em 1940, Freyre identifica “o imperialismo da democracia sobre trechos do Brasil ainda indecisos entre essa tradição genuinamente nossa [a "democracia étnica"] e o racismo violentamente anti-brasileiro [sic], o nazi-jesuitismo [sic], o fascismo sob disfarces sedutores, inclusive o da "hispanidade" (Freyre: 1944, 9).

O conceito de democracia étnica é apenas uma outra forma de expressão da democracia racial. O próprio Freyre utiliza este último, numa terceira conferência, pronunciada no Rio de Janeiro em 1962, quando se refere "[à] já brasileiríssima prática da democracia racial através da mestiçagem" (Freyre: 1962, s/p). Seja como for, percebe-se que é uma idéia calcada na mestiçagem, prática aqui iniciada com a própria chegada do colonizador e reforçada com o entrelaçamento dos mundos da casa grande e da senzala.

A crítica moderna não poupa ataques ao que chamam de "mito da democracia racial", apontando para a realidade brasileira, em que negros e brancos não convivem exatamente sob iguais condições de vida e oportunidades de ascensão social. Se houve a mestiçagem - e foi ela elemento importante na formação da identidade nacional -, não parece ter sido ela suficiente para fundar na sociedade brasileira uma verdadeira democracia de raças e etnias...

Conclusão

Apenas a paixão de Freyre pela descrição e pelo detalhe, colocada a serviço de uma empresa tão árdua quanto apresentar um painel da formação da família e da sociedade brasileira, poderia ter rendido uma obra tão espetacular como Casa Grande & Senzala. Escrita há três quartos de século, sua atualidade é assombrosa, não apenas porque, como sociedade em constante transformação e ainda jovem - quando comparada a culturas e civilizações milenares -, o Brasil precisa conhecer-se e reconhecer-se constantemente, mas, principalmente, porque aborda questões e aspectos de nossa formação ainda não resolvidos e que, pelo contrário, continuam latentes em nossa trajetória histórica contemporânea. Pode-se ou não concordar com muitas das idéias defendidas por Freyre, como a "democracia étnica" ou "racial", o sucesso da colonização portuguesa, a civilização dos trópicos, a quase justificativa da escravidão, cujo trecho significativo merece transcrição, e cujo determinismo chama a atenção, em um autor que se contrapunha a essas idéias que, no esteio do pseudo-darwinismo e do naturalismo, estavam em voga à época:

"No caso brasileiro, porém, parece-nos injusto acusar o govenro português de ter manchado, com a instituição que hoje tanto nos repugna, sua obra grandiosa de colonização. O meio e as circunstâncias exigiriam o escravo... Para alguns publicistas foi um erro enorme [a escravidão]. Mas nenhum nos disse até hoje que outro método de suprir as necessidades do trabalho poderia ter adotado o colonizador português no Brasil... Tenhamos a honestidade de reconhecer que só a colonização latifundiária e escravocrata teria sido capaz de resistir aos obstáculos enormes que se levantaram à civilização no Brasil pelo europeu. Só a casa grande e a senzala. O senhor de engenho rico e o negro capaz de esforço agrícola e a ele obrigado pelo regime de trabalho escravo".

O fato, porém, é que Casa Grande & Senzala é referencial obrigatório para se conhecer o Brasil e a formação de sua sociedade. O país que temos hoje é conseqüência direta da existência necessariamente conjunta desses dois mundos, a casa grande e senzala. Para o bem e para o mal - cabe a cada um reflitir - somos herdeiros do Brasil patriarcal e escravocrata vasculhado e desvendado por Freyre. Se o clássico é aquela obra que continua referenciando o presente mesmo tempos e tempos depois de haver sido produzida, Casa Grande & Senzala é, sem dúvida, um dos maiores clássicos da literatura brasileira de todos as épocas.


N.A.: Os conceitos de “raça”, “etnia”, “negro”, “branco”, “mulato”, “mameluco” e outros termos correlacionados são usados, neste artigo, sem qualquer juízo de valor e/ou pretensão científica. Sabe-se que, na atualidade, a antropologia, a biologia e a sociologia questionam a utilidade desses conceitos como categorias descritivas e analíticas das sociedades humanas e dos indivíduos.
N.A. 2: Casa Grande & Senzala conta com dezenas de edições lançadas ao longo dessas quase oito décadas, e mais de uma foi utilizada para colher as citações aqui reproduzidas, razão pela qual optou-se por não colocar o número da página em que estão.
Outras obras de Freyre consultadas:
Freyre, Gilberto (1938). Conferências na Europa. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde.
___________ (1944). “Um engano de José Lins do Rego”. O Jornal, Rio de Janeiro, 25 de janeiro de 1944.
___________ (1962). O Brasil em face das Áfricas negras e mestiças. Rio de Janeiro, Federação das Associações Portuguesas.
Outras fontes:
Bresser-Pereira, Luis Carlos (2000). Relendo Casa Grande e Senzala. Paper on-line disponível em http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=548.
Guimarães, Antonio Sérgio Alfredo (2001). Democracia Racial. São Paulo, Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Disponível em http://www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial.pdf.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD-2)RELAÇÕES INTERNACIONAIS DO BRASIL:TEMAS E AGENDAS

Hoje o blog Diálogo Diplomático publica excelente resenha de autoria do Ministro Paulo Roberto de Almeida a respeito de uma das obras mais importantes para a prova de Política Internacional do CACD. Ainda que não esteja na bibliografia, este livro nos apresenta uma análise abrangente das temáticas atuais da política externa brasileira e é fundamental para o CACD, até mesmo porque um de seus organizadores tem sido membro da banca corretora da prova na terceira fase.
O texto do Minsitro Paulo Roberto de Almeida é bastante completo, opinativo e esclarecedor na medida em que aponta equívocos e méritos dos diversos artigos da obra. Não tenho dúvidas de que ajudará a muitos candidatos. Eu li a obra completa durante minha fase de preparação, em 2007, e também a resenha: acredito que a síntese aqui apresentada é de excelente qualidade.

As opiniões expressas neste blog são exclusivamente de seus colaboradores e não refletem necessariamente a posição do governo brasileiro.

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As Relações Internacionais do Brasil, Versão Academia

Por Paulo Roberto de Almeida

Henrique Altemani de Oliveira e Antônio Carlos Lessa (organizadores):
Relações internacionais do Brasil: temas e agendas (2 volumes)
São Paulo: Saraiva, 2006, vol. 1: 368 p., ISBN: 85-02-06042-2, R$ 65,00; vol. 2: 508 p., ISBN: 85-02-06040-6, R$ 79,00.

Terreno antes ocupado quase que exclusivamente pela produção estrangeira, o campo editorial brasileiro das relações internacionais vem ganhando, nos últimos anos, adições importantes por parte dos próprios pesquisadores e professores brasileiros dessa área. Ademais da nova edição livro coordenado pelo professor do Irel-UnB, José Flávio Sombra Saraiva, História das relações internacionais contemporâneas: da sociedade global do século XIX à era da globalização (publicado pela primeira vez em 1997, uma segunda vez pelo IBRI, em 2001, e pela Saraiva, em 2007, em edição revista), estes dois volumes sobre os temas e agendas das relações internacionais do Brasil, organizado pelos professores Henrique Altemani e Antonio Carlos Lessa, coordenadores de cursos na PUC-SP e na UnB, constituem o mais recente exemplo de como a produção nacional tem avançado na última década e meia, aproximadamente. Eles constituem, sem dúvida alguma, um complemento importante à bibliografia disponível e parecem destinados a figurar, provavelmente de modo compulsório, nas leituras exigidas nos cursos de relações internacionais e nos concursos de ingresso à carreira diplomática (e talvez tenham sido concebidos expressamente com essa intenção).
O press-release da editora confirma, aliás, esse objetivo: “Os dois volumes (…) foram pensados para o leitor interessado em política externa brasileira – sejam estudantes de graduação e de pós-graduação, candidatos a concursos públicos, e profissionais que se dedicam à formulação e à implementação de políticas públicas e privadas com repercussão internacional – mas também para o cidadão comum, que se inquieta diante das transformações pungentes da política internacional contemporânea e que quer se informar sobre as respostas que o Brasil tem dado a essas mudanças.” O mesmo press-release afirma, à maneira de alerta não desprovido de fundamentação, que a obra “foi organizada para suprir uma grave lacuna verificada na literatura especializada publicada no Brasil, que é a análise acurada e circunstanciada da política externa brasileira, desde o início dos anos noventa.” De fato, desde a organização pioneira por José Augusto Guilhon de Albuquerque e Ricardo Seitenfus dos quatro volumes da obra Sessenta Anos de Política Externa Brasileira, 1930-1990 (primeira edição entre 1996 e 2000, atualmente em curso de republicação), cuja preparação tinha sido feita, justamente, no início da última década do século XX, não se tinha tido outra iniciativa, acadêmica ou diplomática, no sentido de reunir numa única obra um número tão importante e tão diversificado tematicamente de contribuições originais ao estudo das relações internacionais do Brasil.
O primeiro volume está dividido em três partes: “Linhas e Forças”, de cunho generalista e conceitual; “Antigas e Novas Parcerias”, voltada para as relações bilaterais ou regionais: Estados Unidos, Europa, Ásia, África e mundo árabe; e “O Brasil e o seu Entorno”, sobre Mercosul, América do Sul e Alca. O segundo volume também comporta três partes, respectivamente sobre o multilateralismo político e econômico, os grandes temas da agenda internacional contemporânea, do ponto de vista do Brasil, e o debate porventura existente na sociedade sobre as opções de política internacional do Brasil (congresso, empresariado, e academia, ademais do problema federativo).
A atualidade cronológica e a abrangência dos dois novos volumes organizados pelos professores da PUC-SP e da UnB são, portanto, meritórias, mas a primeira observação que pode ser feita à publicação em pauta é, precisamente, a que se refere ao espectro de especialistas recrutados numa e noutra coleção: se os Sessenta Anos de Política Externa Brasileira tinham sido preparados e contaram com a colaboração ativa de diversos representantes da própria diplomacia brasileira – alguns aposentados, mas a maior parte da ativa e com forte presença na formulação e na implementação da política externa –, esta nova edição conta exclusivamente com representantes da academia. Uma iniciativa anterior, do próprio Itamaraty – Gelson Fonseca Jr. e Sérgio Henrique Nabuco de Castro (orgs.), Temas de Política Externa Brasileira, 2 vols., em duas edições nos anos 1990 –, talvez não possa ser considerada como totalmente objetiva, uma vez que contou exclusivamente com a participação de diplomatas da ativa. Os organizadores desta obra admitem que “a falta da visão do Estado, especialmente a dos diplomatas”, foi um risco, mas sua intenção era a de “demonstrar a existência de um pensamento social dinâmico, especialmente configurado na academia brasileira especializada”, que seria assim capaz de construir, “criticamente e sem vieses”, um painel atualizado das relações internacionais do Brasil. A aposta pode ter sido razoável, mas o risco calculado apresenta algum custo em matéria de perfeita compreensão dos problemas enfocados.
O prefaciador, Flávio Saraiva, diz que a obra foi “escrita primordialmente por acadêmicos”, quando na verdade o termo correto seria “exclusivamente”, ainda que um ou outro dos que assinam os 26 capítulos ostente dupla militância ou uma experiência ocasional em funções governamentais ou no setor privado. O prefaciador prossegue dizendo, que a obra “tem rigor acadêmico, mas não circunscreve seu discurso ao teoricismo estéril nem às visões desprovidas de senso prático ou aplicado”, o que talvez seja uma admissão inconsciente de que iniciativas exclusivamente universitárias ou feitas por acadêmicos em tempo integral podem eventualmente exibir algum teoricismo ingênuo ou até falta de senso prático. Ele também acha que a “generosa contribuição” dos autores reforça a “necessidade de rever aspectos da política exterior do Brasil”, talvez porque eles fizeram “uma reflexão menos animada sobre as noções românticas do internacionalismo liberal que perdurou no pensamento de relações internacionais no Brasil e na América Latina na década passada”. Ficamos sabendo, assim, que o País, antes de 2003, mantinha “ilusionismos gerados pela onda de adaptação pouco crítica aos paradigmas do imediato pós-guerra fria”, mas que agora “retomou certa racionalidade no cálculo estratégico externo” (p. viii-ix).
Essa mesma visão, sobre um “antes” e um “depois” na política externa brasileira do período recente, isto é, antes e depois do governo Lula, comparece no primeiro texto da coletânea, da autoria do professor Amado Luiz Cervo, que escreve sobre “A ação internacional do Brasil em um mundo em transformação: conceitos, objetivos e resultados (1990-2005)”. Ele afirma, por exemplo, que: “o neoliberalismo impregnou a inteligência dos dirigentes brasileiros nos anos 1990” (p. 14); que a diplomacia brasileira desses anos aceitou que “o desenvolvimento passasse à dependência dos países ricos, por meio de instruções ou decisões da OMC” (sic); que essa nova doutrina “aceitou limites para a soberania, fez concessões” e “encaminhou o País para o desenvolvimento associado promotor de dependências estruturais” (p. 19). Ele também considera que os “desenvolvimentistas”, que eram “vistos com repugnância pelos dirigentes, que os qualificavam de retrógrados e saudosistas”, conseguiram antever os “resultados do neoliberalismo que desejavam evitar” (p. 14). Frente a tantas certezas dicotômicas, em face desse tipo de visão que distingue entre um mundo “associado” (e necessariamente “neoliberal”) e um outro “autônomo” (obviamente desenvolvimentista e heterodoxo em matérias econômicas), fica difícil reconhecer rupturas e continuidades na vertente diplomática, um universo pleno de matizes e de interesses contraditórios, mas que não costuma separar o mundo entre “gregos” e “troianos”.
O governo Itamar Franco, a despeito de inserido na mesma onda liberalizante e de ter continuado as privatizações e o programa de redução tarifária iniciado por Collor, é visto como “fundamental”, uma vez que ele “tomou precauções diante da onda de redução tarifária, acelerando a integração no Mercosul, propondo a Alcsa [Área de livre comércio sul-americana] e negociando com firmeza nos foros multilaterais globais” (p. 21). Depois do “neoliberalismo subserviente e destrutivo em relação ao patrimônio da nação, a promoção do desenvolvimento associado às forças do capitalismo e a competição internacional perante a égide do livre mercado” – tudo isso supostamente conduzido de forma consciente pelo governo Cardoso –, ocorreu a “correção de modelo em 2003”. Os novos rumos da política externa são dominados por quatro orientações: “tirar o País da ilusão kantiana do ordenamento harmonioso e jogar o jogo duro das relações internacionais que as grandes potência mantêm”; “atenuar a vulnerabilidade externa herdada da fase anterior”, o que implicou, supostamente “pela primeira vez”, “a internacionalização da economia brasileira como movimento de expansão de empresas no exterior, com apoio logístico do Estado”; intensificar a atuação na América do Sul; reforçar o “poder nacional” e a “conquista de reciprocidade real” (p. 26-28).
Amado Cervo acredita que o ambiente político na América do Sul “tornou-se favorável ao curso dessa idéia [a construção de uma unidade política, econômica e de segurança na região] na virada do milênio, com o triunfo de partidos de esquerda em países importantes como a Venezuela, o Chile, a Argentina e o Uruguai” (p. 27-28; ele certamente agregaria a Bolívia e o Equador, se seu texto chegasse ao período recente). Ele incorre em equívoco ao afirmar que “foi possível negociar a fusão dos dois blocos regionais, o Mercosul e Comunidade Andina” (p. 28), quando isso jamais ocorreu. Ele também acha que a ratificação de Tlatelolco e do TNP “foram feitos na ilusão de que o País receberia tecnologias em área sensíveis, o que não ocorreu” (p. 29), confundindo requerimentos habilitantes e direitos garantidos de acesso às tecnologias sensíveis.
Respondendo às queixas de empresários que reclamavam acordos de comércio com países avançados, Amado Cervo alinha-se à diplomacia de Lula: “ao sul movia-se o Brasil com mais efeito, usando parcerias bilaterais, coalizões de países ou os processos de integração na América do Sul, tendo em vista, precisamente, dobrar (sic) os países ricos pela negociação multilateral e levá-los à eliminação de subsídios agrícolas e entraves agrícolas e industriais à entrada de produtos do sul”. Ele vê uma frente de países emergentes como uma “versão atualizada e realista, em nada ideológica, do velho terceiro mundismo”, e acredita que a unidade da América do Sul avançou em 2005, “quando os governos da Argentina, do Brasil e da Venezuela negociaram uma aliança estratégica que ia além do simples comércio e se voltava aos setores produtivo e de infra-estrutura física” (p. 32).
O problema principal desse tipo de visão, para além de pequenos equívocos de interpretação na análise de processos concretos de negociação, é que ela parte de uma caracterização dicotômica da realidade entre, de um lado, um governo arbitrariamente classificado como “neoliberal” – que seria o equivalente moderno do “entreguista” dos velhos tempos – e, de outro lado, um governo pretensamente não ortodoxo em matérias econômicas (mas que pratica o “neoliberalismo” em sua política econômica) – que seria necessariamente “nacional” e “autônomo” no plano externo –, para construir toda uma linha de raciocínio que vê, em cada ação, postura ou atitude do governo FHC, na frente diplomática e internacional, uma demonstração cabal de docilidade ou mesmo de submissão a supostas exigências de reformas (liberais, obviamente) por parte do centro dominante. Esse tipo de visão diminui o sentido da atuação consciente de diplomatas que trabalharam de modo profissional em ambos os governos e distorce as condições sob as quais são tomadas decisões e implementadas linhas de ação na área da política externa, como se, num governo, só existissem concessões e adaptação e, no outro, apenas firmeza e liderança. Argumentos desse tipo podem servir para convencer os já convencidos, mas pode-se também dizer que a história da nossa diplomacia já foi escrita com menor grau de maniqueísmo do que o exibido por certos autores atualmente.
O segundo capítulo, por José Augusto Guilhon de Albuquerque, trata dos desafios de uma ordem internacional em transição e discute as características do novo sistema pós-guerra fria e suas implicações para o Brasil. O autor acredita que as “constrições” e ameaças desencadeadas pelos processos de despolarização e de transnacionalização “são de tal maneira sobrepostas que é impossível estabelecer parcerias, alianças e alinhamentos integralmente coerentes entre si” (p. 54), o que abre novos espaços para a formulação da política externa. Esta pode, a rigor, suportar o “improviso, a idealização, o doutrinarismo”, mas o custo pode ser alto.
No último capítulo da primeira parte, José Flávio Sombra Saraiva trata da teoria e da prática das relações internacionais no início do século XXI, quando a ordem internacional é mais difusa do que sob a guerra fria. Ele vê, não necessariamente uma única sociedade internacional integrada, mas diversas sociedades internacionais, um verdadeiro arquipélago de Estados e sociedades muito diversas, com objetivos por vezes conflitantes.
A segunda parte, dedicada às antigas e às novas parcerias, é mais uniforme em sua metodologia, uma vez que voltada para o exame das relações bilaterais do Brasil com grandes atores. Mônica Hirst, no capítulo 4, classifica em cinco “As” as fases sucessivas das relações Brasil-Estados Unidos: aliança (de fato, até os anos 1940), alinhamento (de 1942 a 1977), autonomia (mantida até os anos 1900), ajustamento (no governo FHC) e afirmação (a partir de Lula). A despeito do caráter em geral amigável dessas relações, sem confrontos maiores, frustrações se acumularam ao longo dos anos, seja por que os EUA não corresponderam ao desejo do Brasil de ter facilitado sua incorporação ao círculo de poder mundial, seja porque o nacionalismo econômico brasileiro decepcionou os interesses privados americanos. O ensaio termina pelo retrato dos contrastes e confrontos entre os dois grandes do hemisfério, inclusive em relação a terceiros países, na medida em que o Brasil pretende avançar no sentido da construção da liderança sul-americana, mas não chega, obviamente, aos novos entendimentos em torno das energias renováveis, realizados entre Lula e Bush na fase recente.
Miriam Gomes Saraiva trata, no capítulo 5, das relações entre o Brasil e a Europa de 1990 a 2004, “entre o inter-regionalismo e o bilateralismo”, segundo o seu subtítulo. Esses anos são marcados pela busca européia de uma nova presença mundial, ao mesmo tempo em que o Brasil também busca contrabalançar a presença americana na região e afirmar-se de modo autônomo no cenário internacional. O Mercosul é um elemento decisivo nesse jogo de barganhas e equilíbrios, da mesma forma como as políticas agrícolas dos dois grandes do comércio mundial condicionam em boa medida as demandas e concessões dos três lados. Henrique Altemani aborda as relações com a Ásia do Leste, à exclusão da Ásia Central e do Sul. O interesse brasileiro, ainda marcado por grande desconhecimento daquela região, é predominantemente econômico (comércio e investimentos) e deixou de estar focado no Japão para incorporar outros países, com destaque para a China, obviamente. Fernando Mourão, Fernando Cardoso e Henrique Altemani tratam, no capítulo 7, das relações Brasil-África entre 1990 e 2005: de uma perspectiva “culturalista”, essas relações evoluíram mais recentemente para uma dimensão presidencial, mas os impulsos dominaram sobre a continuidade. A CPLP e o IBAS são os dois foros mais importantes da atualidade, mas o envolvimento comercial do Mercosul e a formatação de um processo de reuniões de cúpula também foram introduzidos na equação, sempre na perspectiva de uma diplomacia ao sul e anti-hegemônica. Nizar Messari encerra a parte dois tratando das relações do Brasil com o mundo árabe, que ele reconhece ser uma das áreas “de baixa prioridade para a política externa brasileira” (talvez não mais, atualmente). Ocorreu breve fortalecimento no governo Geisel, por razões óbvias de dependência petrolífera, mas foi a exceção, não a regra. De resto, grande parte do relacionamento pode ser explicada pela presença de comunidades judaica e árabe no Brasil, o que introduz também o vetor dos conflitos regionais e a presença dos EUA no Oriente Médio como elementos definidores da atual política externa de busca de relações mais afirmadas. A criação da reunião de cúpula América do Sul-Países Árabes, por iniciativa brasileira, e a aproximação das posições da Liga Árabe tem introduzido alguns ruídos na relação com Israel, mas o autor acredita que ainda assim o Brasil possa ser um mediador nos conflitos no Oriente Médio.
A terceira parte é toda ela dedicada ao entorno geográfico brasileiro, com três capítulos bem delimitados. Luiz Alberto Moniz Bandeira se ocupa da América do Sul, num longo capítulo histórico que parte de Hegel para antecipar um conflito entre as partes norte e sul do hemisfério americano. Ele remonta o conceito de América do Sul ainda ao período imperial, quando havia relativa indiferença em relação ao México e os demais países da região, considerados como pertencentes à esfera de influência dos EUA. Em 1965, essa tradição foi rompida, com o apoio à intervenção americana na República Dominicana. Moniz Bandeira acredita que a questão Mercosul versus Alca constitui “o principal ponto das divergências entre o Brasil e os Estados Unidos” (p. 277), ratificando inteiramente as posições do atual Secretário-Geral do Itamaraty sobre o caráter nefasto da Alca para o Brasil e o Mercosul. Ele também acredita que os países da região aceitam “consensualmente” a liderança brasileira na região, uma vez que ela seria “sem pretensões de hegemonia, respeitando as particularidades de cada povo” (p. 281). A iniciativa brasileira de formar a Comunidade Sul-Americana de Nações é vista como um “objetivo estratégico”, com vistas a tornar a região “uma potência mundial, não só econômica, mas também política” (p. 295).
Janina Onuki trata, no capítulo 10, do Brasil e a construção do Mercosul, que ela vê, corretamente, como “uma marca da política externa dos anos 1990” e uma das “prioridades da agenda externa do governo Lula” (p. 299), embora não seja uma prioridade na agenda dos demais países, e o “bloco convive mais com problemas do que com resultados positivos, o que dificulta traçar cenários otimistas” (p. 300). A crise brasileira de 1999 e a desvalorização do real podem ter precipitado a desconfiança dos sócios, estando na origem do atual pessimismo. Outros autores falam de várias crises simultâneas, inclusive de expectativas e de compromissos, ao lado da falta de efetividade, de eficácia e de transparência. Ela vê objetivos divergentes nas agendas de política externa dos governos Kirchner e Lula, sendo que este último parece disposto a assumir os custos de manter vivo o processo de integração, embora o ativismo possa ser visto pelos demais membros, justamente, como o elemento indesejável de uma busca de liderança não consentida. Sua avaliação é a de que a “crise do Mercosul”, em grande medida dependente dos altos e baixos do relacionamento Brasil-Argentina, “não é estritamente conjuntural, nem apenas delimitada por aspectos comerciais”, derivando de “divergências estruturais, sobretudo no que diz respeito aos modelos de política econômica doméstica e política externa” (p. 317). Hoje, “a limitação de resultados levou o Mercosul a decidir pelo meio rápido: expandir sem discutir o aprofundamento do acordo, a internalização das normas e a garantia do cumprimento das decisões” (p. 318).
Finalmente, Marcelo Passini Mariano e Tullo Vigevani abordam, no último capítulo do primeiro volume, a questão da Alca, vista como uma “integração assimétrica”, uma vez que os EUA enfatizam seus interesses comerciais, ao passo que o Brasil luta pela manutenção de políticas setoriais domésticas. As incertezas ligadas ao projeto americano alimentam duas tendências da política externa brasileira, que seriam a “busca da autonomia pelo distanciamento e a da autonomia pela participação”, atitudes não restritas à questão da Alca, mas presentes desde sempre na diplomacia brasileira (p. 335). A proposta brasileira de uma “Alca light”, feita em 2003, não prosperou, mas o processo foi de toda forma interrompido em 2005, quando os EUA já faziam o cerco ao Brasil, negociando acordos comerciais com todos os demais parceiros, à exceção do Mercosul. Segundo os autores, “o objetivo do jogo [brasileiro] se concentra mais em evitar perdas do que em obter ganhos reais” (p. 353).

O segundo volume, voltado para o multilateralismo e para a agenda diplomática internacional do Brasil, constituiria, segundo o prefaciador José Flávio Saraiva, “um exemplo marcante da renovação epistemológica e metodológica que está em curso na investigação das relações internacionais do Brasil” (p. ix), afirmação que pode parecer algo exagerada, tendo em vista que os textos integrantes abordam questões tradicionais da agenda internacional e da agenda externa do Brasil, esforçando-se seus autores por apresentar as questões e problemas da melhor forma possível, sem que se vislumbre, porém, alguma “ruptura epistemológica” ou metodológica com os padrões conhecidos na academia brasileira. Em todo caso, vale examiná-los um a um, ainda que maneira muito resumida.
Os próprios organizadores, em sua introdução, acreditam que “uma mudança extraordinária” (sic), “entre tantas mudanças radicais, processou-se no sistema de relações internacionais do Brasil desde o final da guerra fria”. Qual seria essa mudança excepcional?: “a desconfiança, ou melhor dizendo, a descrença com que o País via as organizações internacionais se converteu em um entusiasmado engajamento, manifestado como uma fé inabalável nas virtudes do multilateralismo político e econômico” (p. 1). Esse “entusiasmo” pode aparecer como novidade apenas para os outsiders, uma vez que a diplomacia brasileira sempre atribuiu importância primordial às instituições multilaterais, geralmente consideradas, junto com a defesa do direito internacional, como o recurso obrigatório daqueles que não possuem poder real no mundo da política internacional. Em todo caso, a novidade nesta obra é constituída pelos quatro capítulos finais, que abordam a participação de atores não tradicionais na política externa (Congresso e empresariado), o problema do federalismo e o debate acadêmico e social sobre as relações internacionais do Brasil.
O segundo volume compõe-se de quinze capítulos, divididos em três partes. A primeira, sobre o multilateralismo, começa por examinar a questão da ONU, sob a pluma do professor da UnB Virgilio Arraes. A cobertura está circunscrita ao período posterior a 1990, década de grandes conferências internacionais já examinadas de modo competente pelo diplomata José Augusto Lindgren Alves, em seu livro Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências (Brasília: IPRI-Funag, 2000). O autor registra a evolução da participação brasileira nessas instâncias internacionais, de uma adesão aos novos cânones da “democracia neoliberal” à frustração com a face menos risonha da “globalização assimétrica”, a partir das crises financeiras do final da década, até a busca pela sua incorporação no CSNU, mas conclui que o Brasil não tinha conseguido acumular “cabedal suficiente” para transpor o “fosso de poder” (p. 41) da ordem pós-guerra fria.
Alcides Costa Vaz trata, em seguida, do sistema interamericano, tanto do ponto de vista da integração e do comércio, como no plano da segurança regional. O hemisfério passou da era da guerra fria – quando a preocupação de Washington era prioritariamente securitária e focava quase exclusivamente a luta contra o comunismo e a influência soviética – para uma redefinição de agendas nos anos 1990, com a ascensão dos temas econômicos de modo amplo, em especial a dimensão comercial, manifestada no projeto americano de uma Área de Livre Comércio das Américas. Acadêmicos, seguidos por diplomatas, consideraram a Alca um “suicídio histórico”, posição de ampla receptividade nos mais diferentes meios políticos do Brasil, resultando inclusive na sua rejeição a termo. A dimensão da segurança e da cooperação militar foi tratada em conferências organizadas pela OEA e em encontros de ministros da defesa, com posições não consensuais quanto à natureza das novas ameaças – narcoguerrilha, terrorismo – e o emprego das forças armadas. O autor conclui que a agenda interamericana do Brasil padece de certa ambigüidade e da falta de instrumentos capazes de lhe conferir maior funcionalidade no quadro das relações externas (p. 72).
Antonio Jorge Ramalho da Rocha aborda a questão dos regimes internacionais, vistos pela diplomacia brasileira de uma ótica westfaliana, assentada em valores tradicionais: jurisdicismo, pacifismo (ou não-confrontacionismo), realismo e desenvolvimentismo. O autor destaca a “natureza contraditória” da adesão do Brasil ao TNP, uma vez que nada teria mudado, substancialmente, nas razões e condições que tinham determinado a recusa, durante três décadas, daquele tratado “discriminatório”; tal decisão do governo FHC teria representado “custos muito elevados e benefícios irrelevantes, senão inexistentes” (p. 118-119). Eiiti Sato, no capítulo 4, se ocupa do GATT-OMC e das questões de comércio internacional, ressaltando a posição atuante do Brasil em praticamente todas as rodadas de negociação e seu crescente papel nos processos de barganha.
Paulo Vizentini considera que as iniciativas de “geometria variável” do Itamaraty, como o G-3 (ou IBAS, com Índia e África do Sul) e o G-20 (para as negociações agrícolas da Rodada Doha), “resultam de uma leitura realista das mudanças em curso no sistema internacional” e a “contínua adaptação de uma estratégia voltada ao apoio, ao desenvolvimento e, mais discretamente, de ampliação do poder nacional” (p. 159). A estratégia faria parte de um projeto que pretende “rever o modelo de desenvolvimento de inspiração neoliberal”, que teria produzido uma “estagnação generalizada” (p. 166). Para ele, os governos de Collor a FHC “privilegiavam apenas as relações com os países ricos e, em menor medida, com o Mercosul” (p. 181), já que o ex-presidente FHC “não possuía os requisitos para uma mudança que ultrapassasse um tímido discurso crítico” e Lula “passou a desenvolver uma intensa agenda internacional (...) como porta-voz de um projeto que transcende objetivos de simples projeção pessoal e adesão subordinada à globalização”. Na linha de Amado Cervo, ele acha que “essa é a grande diferença: o desalinhamento da política externa em relação ao ‘consenso’ liberal norte-atlântico como forma de recuperar a capacidade de negociação” (p. 189). Otimista, ele acha que o G-3 pode “vir a se tornar um G-5, com uma virtual adesão da China e da Rússia” (p. 191).
Renato Baumann focaliza as relações do Brasil com o FMI, o BIRD e o BID nos anos 1990 e nota que nenhum outro país conseguiu, junto ao FMI, recursos equivalentes a 900% da sua cota, como ocorreu em 2002, com a utilização de 63% do valor global de 30 bilhões de dólares, inédito para operações exclusivas do FMI. Em contrapartida, o Brasil aceitou condicionalidades que se traduziram em reformas como as da previdência social e a adoção da Lei de Responsabilidade Fiscal (p. 215). Outro traço dos anos 1990 é uma opção das três instituições por “tornar os investimentos cada vez mais dependentes das decisões do setor privado e cada vez menos uma iniciativa do Estado”, mas segundo Baumann “essa lógica tende a penalizar (ou adiar) os investimentos em atividades socialmente desejáveis, mas de baixo retorno privado” (p. 216).
A segunda parte, o Brasil e os temas da agenda internacional contemporânea, é aberta por um texto de Antonio Augusto Cançado Trindade sobre os direitos humanos, de 1985 a 2005. Ele já tinha assinado a magnífica obra A proteção internacional dos direitos humanos e o Brasil (1948-1997): as primeiras cinco décadas (Brasília: Editora da UnB, 2000), período marcado pela adesão do Brasil aos dois pactos da ONU e à Convenção Americana sobre direitos humanos, decisão da qual foi responsável direto, como consultor jurídico do Itamaraty no período pós-redemocratização. Ainda mais significativa e decisiva foi sua contribuição, depois de 13 anos de luta, para a aceitação obrigatória pelo Brasil da competência contenciosa da Corte Interamericana, efetuada em 1998. Ele está, porém, plenamente consciente de que o futuro da proteção dos direitos humanos no Brasil, em especial no que se tange à tortura, depende basicamente de “medidas nacionais de implementação” (p. 247).
A política externa ambiental está coberta em coerente capítulo assinado por Ana Flávia Barros Platiau, que ressalta certas ambigüidades da política ambiental brasileira, em função de sua inevitável conexão com as áreas comercial e industrial. As premissas de atuação do Brasil nos foros internacionais mantêm-se os mesmos desde 1992, mas a novidade no atual governo é a “maior participação de atores não estatais na construção da política externa ambiental”, ainda que eles não tenham sido capazes de moldar o conteúdo dessa política (p. 253). Durante todo o período, o Brasil manteve-se coerente com seu princípio de “responsabilidades comuns, porém diferenciadas” na gestão dos recursos naturais, mas demonstra – segundo ela, uma “infundada” – resistência ao conceito de “patrimônio comum da humanidade”, em virtude de conhecido temor em relação à Amazônia. O Brasil exerceria, nesses foros, uma “liderança sem hegemonia”, com parceiros diferenciados em função de temas específicos (os “megadiversos” seriam um exemplo). Em síntese, o Brasil não mais considera, como em 1972, as questões ambientais como uma “ameaça internacional à sua soberania”, mas como uma “oportunidade para se garantir o desenvolvimento nacional” (p. 276).
Thomaz Guedes da Costa, conhecido especialista em questões de segurança, trata dessa temática em um capítulo intitulado, simbolicamente, “Em busca da relevância”. Ele considera que o processo decisório brasileiro é em geral introspectivo e pouco propenso a integrar os temas de segurança internacional na sua agenda, mas fica mais alerta quando o foco se aproxima da Amazônia. Afirma, também, que a pretensão brasileira de ser um rule-maker no sistema internacional produziu um “projeto anacrônico, particularmente na ambição de tomar lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas” (p. 285). Para ele, a proposta brasileira é “incompleta”, uma vez que o Brasil “não é reconhecido como um ator fundamental na segurança internacional, merecedor de um assento, nem pelas potências atuais, nem pelos vizinhos das esquinas americanas ou africanas” (p. 297). Eugenio Diniz continua no mesmo terreno, ao tratar das operações de paz da ONU e a participação do Brasil. Ele deixa, porém, de mencionar a importante contribuição do diplomata Paulo Roberto Campos Tarrisse da Fontoura para o estudo dessa questão no livro O Brasil e as operações de manutenção da paz das Nações Unidas (Brasília: Funag, 1999). Diniz considera que a participação ativa do Brasil e a sua liderança da missão de paz no Haiti “podem abrir um importante e significativo precedente para a diplomacia brasileira”, em vista da reconhecida resistência brasileira em participara de missões de “imposição de paz”, em contraste com as missões de “manutenção da paz”. Para ele, pode ser que “se esteja diante de uma inflexão adicional da política externa brasileira” (p. 334).
Pio Penna Filho aborda, no capítulo 11, as “estratégias de desenvolvimento social e combate à pobreza”, do ponto de vista da agenda internacional do Brasil. Ele também acha que ocorreu uma “imposição do modelo econômico neoliberal”, doutrina que seria hegemônica e que “prevê a redução drástica da intervenção do Estado na economia, até mesmo do Estado de Bem-Estar Social” (p. 340). Ele trata dos esforços do governo Lula para incorporar a dimensão do combate à pobreza e à fome na agenda internacional, mas dedica igual atenção à agenda interna nessa vertente.
A terceira parte, finalmente, está voltada para o debate social sobre as escolhas internacionais do Brasil, começando por um estudo de João Augusto de Castro Neves sobre o papel do Congresso na política externa. Desprovido de bibliografia, a despeito de mencionar autores no texto, o capítulo cobre a estrutura constitucional e política das relações exteriores no Brasil e trata de forma detalhada das atitudes dos congressistas em relação à integração regional e seu interesse nas negociações hemisféricas da Alca, certamente os temas que mais chamaram a atenção no período recente.
Amâncio de Oliveira e Alberto Pfeifer, ao abordar o papel dos empresários na política externa, reconhecem que esta se tornou, desde os anos 1990, mais transparente e permeável à sociedade brasileira. Sua participação foi, no entanto, bem mais intensa na promoção comercial do que nas negociações de política comercial, muito embora o Mercosul tenha representado um novo marco inclusivo. O governo Lula é caracterizado como um “ativismo nacionalista”: os autores lembram que os dirigentes do PT viam a Alca mais como um projeto de “anexação” do que de integração, que as opções “Sul-Sul” já estavam pré-determinadas e que o agronegócio foi beneficiado mais pela sua capacidade de gerar dólares de exportação do que por simpatia congênita. Eles dizem que, em função da opção ideológica do governo, “a burocracia diplomática teria abandonado posturas mais pragmáticas nas arenas do comércio internacional” (p. 401). Um interessante quadro analítico sumaria as relações entre o empresariado e o Estado no campo da política externa desde os governos Collor e Itamar até Lula. A fase recente é caracterizada pela internacionalização de grandes empresas brasileiras. Eles concluem pelo estudo da Coalizão Empresarial Brasileira e seu envolvimento nas negociações da Alca, algo inédito para os padrões “retraídos” do empresariado brasileiro.
José Flávio Sombra Saraiva trata do federalismo nas relações exteriores, também chamado de “paradiplomacia”. A participação de estados e municípios na política externa pode se dar de forma “atabalhoada”, daí os esforços do Itamaraty em enquadrar as iniciativas das assessorias de relações internacionais das unidades federadas. Por fim, no último capítulo, Antonio Carlos Lessa conclui, a partir do crescimento da produção acadêmica e da expansão da formação de quadros especializados, que estaria havendo um “adensamento do pensamento brasileiro em relações internacionais”, sendo que o primeiro exemplo seria a própria UnB, onde milita boa parte dos autores citados. Não obstante aderir o autor aos paradigmas esquemáticos e simplificadores propostos por Amado Cervo para enquadrar as relações internacionais do Brasil a partir do século XIX – liberal-conservador, até 1930; desenvolvimentista, até 1989; normal e logístico, desde então –, trata-se de excelente conclusão, em forma de balanço, para uma obra muito bem-vinda, que passa a representar uma referência doravante indispensável para os estudos da e na área. Um índice remissivo e uma bibliografia consolidada dos títulos mais importantes para cada seção temática seriam muito úteis numa segunda edição da obra, que provavelmente não tardará demasiado.
Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

SÉRIE DE RESENHAS E FICHAMENTOS PARA O CACD-1) O POVO BRASILEIRO

O Diálogo Diplomático inicia hoje a publicação de sua série de resenhas e/ou fichamentos das leituras obrigatórias indicadas para a segunda fase do CACD. O material publicado não será todo de minha autoria. Escreverei somente a respeito das obras literárias e de Visão do Paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda. As demais obras serão tratadas por colaboradores do blog.

A primeira síntese que publicamos é da autoria de Krishna Monteiro, membro do grupo de e-mails do blog, a respeito da obra de Darcy Ribeiro. Este fichamento, publicado aqui com a devida autorização, foi extremamente útil para mim durante meu processo de prepração em 2007. Por meio dele me foi possível revisar os conceitos fundamentais da obra de Darcy Ribeiro e me preparar satifatoriamente para a prova de redação. Não hesito em afirmar que foi fundamental para a minha aprovação.

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O Povo Brasileiro – A Formação e o Sentido do Brasil
Darcy Ribeiro

Por Krishna Mendes Monteiro



“Por que o Brasil ainda não deu certo?” Esta é a questão que motiva a obra de Darcy Ribeiro (2002), dedicada a compreender o Brasil e os brasileiros – sua gestação como povo e seu lugar específico na história humana.
Ribeiro, no quadro de sua teoria da história, cunha dois conceitos com os quais trabalhará ao longo de toda sua obra: a) “povo novo” e b) “transfiguração étnica”. O primeiro diria respeito ao resultado da confluência das três matrizes raciais – portuguesa, negra e indígena – que deram origem ao brasileiro e à sua especificidade:

“Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um “povo novo” (Ribeiro, 1970) num novo modelo de estruturação societária. Novo porque surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam. “Povo novo”, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária, que inaugura uma forma singular de organização sócio-econômica, fundada num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os brasileiros” (Ribeiro, 1970: 19)

O caráter de novidade, contudo, do povo brasileiro, carregaria consigo a outra face da mesma moeda – um povo que é simultaneamente “novo” e “velho”:

“Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não existe para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do desgaste da população que recruta no país ou importa.” (ibidem, p. 20)

Já o conceito de “transfiguração étnica” diria respeito ao processo através do qual os povos surgem, se transformam ou morrem.
Ribeiro aplica tais termos à análise da realidade histórica brasileira, estruturando seu estudo em torno de cinco eixos: I) “O Novo Mundo”, que situa a formação do Brasil dentro do processo de expansão dos “impérios mercantis salvacionistas” europeus; II) “Gestação Étnica”, que mapeia os processos responsáveis pelo surgimento da etnia brasileira a partir de suas três matrizes formadoras; III) “Processo Sociocultural”, que identifica as forças responsáveis pela diversificação de nossa matriz étnica originária em diversos “modos rústicos de ser” dos brasileiros; IV) “Os Brasis na história”, dedicado à identificação e descrição destes modos de ser; V) “O Destino Nacional”, que analisa o tipo de estratificação social que advém de nosso processo de formação, assim como suas consequências em termos de tensões dissociativas de caráter traumático.

I) O Novo Mundo
Ribeiro situa a expansão ultramarina portuguesa dentro do amplo “processo civilizatório” que deu origem a dois Estados nacionais precocemente unificados: Portugal e Espanha. Impulsionados pela força de suas revoluções tecnológica, mercantil e política, tais nações se projetam, a partir da Península Ibérica, em direção às Américas, África e Ásia, motivados por uma ideologia salvacionista que ambicionava unificar todos os povos pagãos sob a égide de um império mundial católico-romano. Ao chegar ao Brasil, os portugueses se defrontam com centenas de tribos do tronco tupi que ocupavam o litoral. É chegada a hora do “enfrentamento dos mundos” – batalha que, nas palavras de Ribeiro, foi francamente desfavorável aos índios:

“Frente à invasão européia, os índios defenderam até o limite possível seu modo de ser e de viver. Sobretudo depois de perderem as ilusões dos primeiros contatos pacíficos, quando perceberam que a submissão ao invasor representava suas desumanização como bestas de carga. Nesse conflito de vida ou morte, os índios de um lado e os colonizadores do outro punham todas as suas energias, armas e astúcias. Entretanto, cada tribo, lutando por si, desajudada pelas demais – exceto em umas poucas ocasiões em que se confederaram, ajudadas pelos europeus que viviam entre elas – pôde ser vencida por um inimigo pouco poderoso mas superiormente organizado, tecnologicamente mais avançado e, em consequência, mais bem armado.
As vitórias européias se deveram principalmente à condição evolutiva mais alta das incipientes comunidades neobrasileiras, que lhes permitia aglutinar-se em uma única entidade política servida por uma cultura letrada e ativada por uma religião missionária, que influenciou poderosamente as comunidades indígenas.” (ibidem, p. 49)






II) Gestação Étnica
Fixando-se ao longo da costa, os portugueses fazem uso da instituição indígena do “cunhadismo” com o objetivo de recrutar braços para a exploração econômica da terra e para o combate às tribos hostis. Tomam tantas esposas índias quanto lhes era possível, estabelecendo assim uma rede de parentesco – centenas de sogros, cunhados, genros – essencial à realização de seus propósitos. Tal processo, para Ribeiro, além de constituir o principal motor de povoamento e colonização do novo ambiente, terminaria por engendrar o núcleo e a base fundamental do que, no futuro, constituiria a etnia brasileira: uma infinidade de “mamelucos”, gerados no ventre índio a partir do sêmen branco, dotados de uma identidade própria que os diferenciava, por negação, tanto de seus pais portugueses quanto de suas mães índias:

“Assim é que, por via do cunhadismo, levado ao extremo, se criou um gênero humano novo que não era, nem se reconhecia e nem era visto como tal pelos índios, pelos europeus e pelos negros. Esse gênero de gente alcançou uma eficiência inexcedível, a seu pesar, como agentes da civilização. Falavam sua própria língua, tinham sua própria visão de mundo, dominavam um alta tecnologia de adaptação à floresta tropical. Tudo isso aurido de seu convívio compulsório com os índios de matriz tupi.” (ibidem, p. 109)


Trazidos da costa ocidental da África, os negros terminam por se integrar a esta célula original Tupi, sem reter, entretanto, uma herança cultural tão rica quanto a indígena. Tal fato se deveria à diversidade línguística e cultural das tribos traficadas para o Brasil, muitas delas hostis entre si. Esta “Babel” – segundo as palavras de Ribeiro –, submetida ao regime degradante do engenho, é compelida a se integrar passivamente ao universo cultural da nova sociedade, ainda que retendo para si inúmeros focos de resistência no campo da música, da culinária e da religião. Mas desempenharia dois papéis fundamentais: atuar como difusores da língua portuguesa, aprendida no duro trato com o capataz, a partir dos dois focos dinâmicos da economia colonial onde estavam fixados – o Nordeste açucareiro e a região das minas; dar origem, mesclando-se aos brancos, ao enorme contigente de mulatos que seria, somado aos mamelucos, um dos alicerces da ainda incipiente “brasilianidade”:

“Esses mulatos ou eram brasileiros ou não eram nada, já que a identificação com o índio, com o africano ou com o brasilíndio era impossível. Além de ajudar a propagar o português como língua corrente, esses mulatos, somados aos mamelucos, formaram logo a maioria da população que passaria, mesmo contra sua vontade, a ser vista e tida como gente brasileira.” (ibidem, p. 128)

“O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da ninguendade de não-índios, não-europeus e não negros, que eles se vêem forçados a criar sua própria identidade étnica: a brasileira.” (ibidem, p. 130)

“Trata-se, em essência, de construir uma representação co-participada como uma nova entidade étnica com suficiente consistência cultural e social para torná-la viável para seus membros e reconhecível por estranhos pela singularidade dialetal de sua fala e por outras singularidades. Precisava, por igual, ser também suficientemente coesa no plano emocional para suportar a animosidade inevitável de todos os mais dela excluídos e para integrar seus membros numa entidade unitária, apesar da diversidade interna dos seus membros ser frequentemente maior que suas diferenças com respeito a outras etnias.”


Constituem-se assim os núcleos “neobrasileiros” – entidades com ramificações rurais e urbanas, fortemente hierarquizadas, estratificadas, comandadas a partir da metrópole e integradas à economia mundial. Resultado do que Ribeiro identifica como um “salto evolutivo” em relação à matriz tupi, estas novas comunidades são agora capazes de “abranger maior número de membros do que as aldeias indígenas, liberando parcelas crescentes deles das tarefas de subsistência para o exercício de funções especializadas” (ibidem, p.121). Nelas, o povo brasileiro em germinação não teria acesso a funções de mando, executadas por uma camada superior, composta de três setores letrados:

“Tais eram: uma burocracia colonial comandada por Lisboa, que exercia funções de governo civil e militar; outra religiosa, que cumpria o papel de aparato de indoutrinação e catequese dos índios e de controle ideológico da população sob a regência de Roma; e, finalmente, uma terceira, que viabilizava a economia de exportação, representada por agentes de casas financeiras e de armadores, atenta aos interesses e às ordens dos portos europeus importadores de artigos tropicais. Esses três setores, mais seus corpos de pessoal auxiliar, instalados nos portos, constituíram o comando da estrutura global. (...) Era, de fato, uma subestrutura da rede metropolitana européia, menos independente de seus demais componentes, porque estava intermediada por Lisboa.” (ibidem, p. 125)







A partir destes núcleos iniciais, tem início um vertiginoso processo de aumento da população e ocupação territorial. O “arquipélago de implantes coloniais, ilhados e isolados uns dos outros por distâncias de milhares de quilômetros” (ibidem, p. 156) transforma-se, com o passar dos anos, em um continente compacto, articulado cultural e comercialmente em decorrência do surto minerador. A dizimação dos índios prossegue. Ribeiro aponta o intenso processo de “desindianização” que se dá em nossas terras, acompanhado do crescimento da população mameluca – herança do cunhadismo – e mulata – fruto do acasalamento entre escravos e senhores. Inverte-se, assim, nossa composição populacional. Os mestiços são agora maioria.
A “segunda invasão portuguesa”(ibidem, p. 157), com a vinda de 20 mil membros da corte Lusa para o Brasil, representou outro estímulo à integração. “O Brasil que nunca tivera universidades recebe de abrupto toda uma classe dirigente competentíssima que, naturalmente, se faz pagar se apropriando do melhor que havia no país. Mas nos ensina a governar.” (ibidem, p. 157). Étnica e economicamente integrado, consolida-se assim, em fins do séc. XIX, o povo brasileiro – ainda na condição de “proletariado externo”:


“O resultado fundamental dos três séculos de colonização e dos sucessivos projetos de viabilização econômica do Brasil foi a constituição dessa população – de 5 milhões de habitantes, umas das mais numerosas das Américas de então –, com a simultânea deculturação e transfiguração étnica das suas diversas matrizes constitutivas. (...) O produto real do processo de colonização já era, naquela altura, a formação do povo brasileiro e sua incorporação a uma nacionalidade étnica e economicamente integrada. Esse último resultado parece haver sido alcançado umas décadas antes, quando quase todos os núcleos brasileiros já se integravam em uma rede comercial interna e esta passara a ser mais importante que o mercado externo. Os revezes experimentados pelas diversas economias regionais de exportação e a consequente queda do poderio do empresariado latifundiário e monocultor pareceram abrir aos brasileiros, naquele momento, a oportunidade de se estruturarem como um povo que existisse para si mesmo. Isso talvez tivesse ocorrido se não surgisse um novo produto de exportação – o café –, que viria articular toda a força de trabalho para um novo modo de integração no mercado mundial e de reincorporação dos brasileiros na condição de proletariado externo.” (ibidem, p. 159)






Em síntese:


“Quisesse ou não, o Brasil era um componente marginal e dependente da civilização agrário-mercantil em vias de se industrializar. Dentro de quaisquer desses tipos de civilização, o fracasso de uma linha de produção exportadora só incitava a descobrir outra linha que, substituindo-a, revitalizasse a economia colonial, fortalecendo, em consequência, a dependência externa e a ordenação oligárquica interna” (ibidem, p. 160)


III) Processo sociocultural
Mas a gestação do “povo novo” não se fez sem conflitos. Ribeiro investe contra a idéia de uma suposta “cordialidade” inerente ao “pacífico” e “gentil” povo brasileiro. E passa a elencar as inúmeras “guerras do Brasil” (ibidem, p.167)
Os conflitos que acompanharam nossa formação teriam assumido variadas dimensões – étnica, social, econômica, religiosa, racial, etc. – e dificilmente poderiam ser observados em uma forma “pura”. Cada embate traria consigo múltiplas dimensões, exigindo, assim, um olhar atento à sua determinação predominante. O autor enumera alguns exemplos: a luta dos cabanos, de caráter marcadamente inter-étnico; a guerra de Palmares, de contornos raciais; o conflito de Canudos, de corte étnico, classista e racial.
Se nosso povo se plasmou, de fato, na guerra, a colonização não deixou de constituir também um empreendimento – ou uma “empresa”, nas palavras do autor,

“No plano econômico, o Brasil é produto da implantação e da interação de quatro ordens de ação empresarial, com distintas funções, variadas formas de recrutamento da mão-de-obra e diferentes graus de rentabilidade. A principal delas, por sua alta eficácia operativa, foi a empresa escravista, dedicada seja à produção de açúcar, seja à mineração de ouro, ambas baseadas na força de trabalho importada da África. A segunda, também de grande êxito, foi a empresa comunitária jesuítica, fundada na mão-de-obra servil dos índios. Embora sucumbisse na competição com a primeira, e nos conflitos com o sistema colonial, também alcançou notável importância e prosperidade. A terceira, de rentabilidade muito menor, inexpressiva como fonte de enriquecimento, mas de alcance social substancialmente maior, foi a multiplicidade de microempresas de produção de gêneros de subsistência e de criação de gado, baseada em diferentes formas de aliciamento de mão-de-obra, que iam de formas espúrias de parceria até a escravização do indígena, crua ou disfarçada.” (ibidem, p. 176)
Mas a competição entre tais empreendimentos também era acompanhada pela interdependência:

“Na realidade, competindo embora, essas três formas de organização empresarial se conjugavam para garantir, cada qual no desempenho de sua função específica, a sobrevivência e o êxito do empreendimento colonial português nos trópicos. As empresas escravistas integram o Brasil nascente na economia mundial e asseguram a prosperidade secular dos ricos, fazendo do Brasil, para eles, um alto negócio. As missões jesuíticas solaparam a resistência dos índios, contribuindo decisivamente para a liquidação, a começar pelos recolhidos às reduções, afinal entregues inermes a seus exploradores. As empresas de subsistência viabilizaram a sobrevivência de todos e incorporaram os mestiços de europeus com índios e negros, plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro. Foram, sobretudo, um criatório de gente.” (ibidem, p. 117)

A articulação, organização e controle da imensa “empresa Brasil” seria assegurada, por sua vez, pelas cúpulas empresarial e burocrática.

“Sobre essas três esferas empresariais produtivas pairava, dominadora, uma quarta, constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação. Esse setor parasitário era, de fato, o componente predominante da economia colonial e o mais lucrativo dela. Ocupava-se das mil tarefas de intermediação entre o Brasil, a Europa e a África no tráfico marítimo, no câmbio, na compra e venda, para o cumprimento de sua função essencial, que era trocar mais da metade do açúcar e do ouro que aqui se produzia por escravos caçados na África, a fim de renovar o sempre declinante estoque de mão-de-obra necessário para sua produção” (ibidem, p. 178)

“Tratamos até agora das cúpulas empresariais. Elas seriam inexplicáveis, porém, sem a sua contraparte, que era o patriciado burocrático. Toda a vida colonial era presidida e regida, de fato, pela burocracia civil de funcionários governamentais e exatores, e pela militar dos corpos de defesa e repressão. A seu lado, operando de forma solidária, estava a burocracia eclesiástica dos servidores de Deus, consagrando, dignificando os que se ocupavam dos negócios terrenos, sobretudo captando a maior parte dos recursos que ficavam na terra, para com eles exaltar a grandeza de Deus nas casas e templos de suas ordens. Essa cúpula patricial, cuja elite era toda oriunda da metrópole, formava com a cúpula empresarial e, com a mercantil, a elite dominante da colônia, essencialmente solidária frente aos outros corpos da sociedade, apesar de suas cruas oposições de interesses.” (ibidem, p.178)


Configurada assim desde os primórdios da “empresa Brasil”, tal estratificação social se perpetuará ao longo dos séculos. As mudanças que sofrerá constituirão muito mais uma renovação, adaptação ou até mesmo reinvenção de sua estrutura cúpulas-bases do que uma ruptura radical com uma ordem solidamente cristalizada:

“Nossa tipologia das classes sociais vê na cúpula dois corpos conflitantes, mas mutuamente complementares. O patronato de empresários, cujo poder vem da riqueza através da exploração econômica; e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos, tal como o general, o deputado, o bispo, o líder sindical e tantíssimos outros. Naturalmente, cada patrício enriquecido quer ser patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além da riqueza, o poder de determinar o destino alheio.” (ibidem, p.208)

“Nas últimas décadas surgiu e se expandiu um corpo estranho nessa cúpula. É o estamento gerencial das empresas estrangeiras, que passou, que passou a constituir o setor predominante das classes dominantes. Ele emprega os tecnocratas mais competentes e controla a mídia, conformando a opinião pública. Ele elege parlamentares e governantes. Ele manda, enfim, com desfaçatez cada vez mais desabrida.” (ibidem, p. 208)

“Abaixo dessa cúpula ficam as classes intermediárias, feitas de pequenos oficiais, profissionais liberais, policiais, professores, o baixo clero e similares. Todos eles propensos a prestar homenagem às classes dominantes, procurando tirar disso alguma vantagem. Dentro dessa classe, entre o clero e os raros intelectuais, é que surgiram os mais subversivos em rebeldia contra a ordem. A insurgência mesmo foi encarnada por gente de seus estratos mais baixos. Por isso mesmo mais padres foram enforcados do que qualquer categoria de gente.” (ibidem, p. 209)

“Seguem-se as classes subalternas, formadas por um bolsão da aristocracia operária, que têm empregos estáveis, sobretudo os trabalhadores especializados, e por outro bolsão que é formado por pequenos proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais etc.” (ibidem, p. 209)

“Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango das classes sociais brasileiras, fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade. São os enxadeiros, os bóias-frias, os empregados na limpeza, as empregadas domésticas, as pequenas prostitutas, quase todos analfabetos e incapazes de organizar-se para reivindicar. Seu desígnio histórico é entrar no sistema, o que sendo impraticável, os situa na condição de classe intrinsecamente oprimida, cuja luta terá de ser a de romper com a estrutura de classes. Desfazer a sociedade para refazê-la” (ibidem, p. 209)

“Essa estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um sistema autoperpetuante da ordem social vigente. Seu comando natural são as classes dominantes. Seus setores mais dinâmicos são as classes intermédias. Seu núcleo mais combativo, as classes subalternas. E seu componente majoritário são as classes oprimidas, só capazes de explosões catárticas ou de expressão indireta de sua revolta. Geralmente estão resignadas com seu destino, apesar da miserabilidade em que vivem, e por sua incapacidade de organizar-se e enfrentar os donos do poder.” (ibidem, p. 209)

“Essa configuração de classes antagônicas mas interdependentes organiza-se, de fato, para fazer oposição às classes oprimidas – ontem escravos, hoje subassalariados – em razão do pavor pânico que infunde a todos a ameaça de uma insurreição social generalizada.” (ibidem, p. 210)


Em meio a uma estratificação que se perpetua, qual o caráter de nossas instituições republicanas?

“Dentro desse contexto social jamais se puderam desenvolver instituições democráticas com base em formas locais de autogoverno. As instituições republicanas, adotadas formalmente no Brasil para justificar novas formas de exercício do poder pela classe dominante, tiveram sempre como seus agentes junto ao povo a própria camada proprietária. No mundo rural, a mudança de regime jamais afetou o senhorio fazendeiro que, dirigindo a seu talante as funções de repressão policial, as instituições da propriedade na Colônia, no Império e na República, exerceu desde sempre um poderio hegemônico” (ibidem, p. 218)

“A sociedade resultante tem incompatibilidades insanáveis. Dentre elas, a incapacidade de assegurar um padrão de vida, mesmo modestamente satisfatório, para a maioria da população nacional; a inaptidão para criar uma cidadania livre e, em consequência, a inviabilidade de instituir-se uma vida democrática. Nessas condições ,a eleição é uma grande farsa em que massas de eleitores vendem seus votos àqueles que seriam seus adversários naturais. Por tudo isso é que ela se caracteriza como uma ordenação oligárquica que só se pode manter artificiosa ou repressivamente pela compressão das forças majoritárias às quais condena ao atraso ou à pobreza.” (ibidem, p. 219)

“Não é por acaso, pois, que o Brasil passa de colônia a nação independente e de Monarquia a República, sem que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba. Todas as nossas instituições políticas constituem superafetações de um poder efetivo que se mantém intocado: o poderio do patronato fazendeiro.” (ibidem, p. 219)


Síntese: o arcaico e o moderno
Arcaísmo e modernidade. Talvez a chave para a compreensão do pensamento de Darcy Ribeiro resida na relação, muitas vezes conflituosa, entre estes dois pólos. O caráter de “povo novo” dos brasileiros – o fato de serem resultado da deculturação e transfiguração étnica de três matrizes distintas – os teria transformado em homens “tábula rasa”, prontos a absorver as forças renovadoras da Revolução Industrial. As antigas bandeiras mamelucas que se difundiram por todo o território nacional terminaram por engendrar um povo de grande homogeneidade étnica, receptivo à mudança, aberto ao diálogo entre suas ilhas de “modernidade” e seus bolsões “atrasados”:

“Esse é o resultado fundamental do processo de deculturação das matrizes formadoras do povo brasileiro. Empobrecido, embora, no plano cultural com relação a seus ancestrais europeus, africanos e indígenas, o brasileiro comum se construiu como homem tábua rasa, mais receptivo às inovações do progresso do que o camponês europeu tradicionalista, o índio comunitário ou o negro tribal.” (ibidem, p. 249)


Se nossa origem e especificidade, portanto, nos colocaram na ante-sala da modernidade, quais as razões para o nosso atraso frente aos países centrais? Ou, retomando a pergunta inicial de seu livro: “por que o Brasil ainda não deu certo?”

“A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram, portanto, no povo ou no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes. Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de articulação com a economia mundial, que atuam como fator de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança Esse é o caso da propriedade fundiária, incompatível com a participação autônoma das massas rurais nas formas modernas de vida e incapaz de ampliar as oportunidades de trabalho adequadamente remuneradas oferecidas à população. É também o caso da industrialização recolonizadora, promovida por corporações internacionais atuando diretamente ou em associação com os capitais nacionais. Embora modernize a produção e permita a substituição das importações, apenas admite a formação de um empresariado gerencial, sem compromissos outros que não seja o lucro a remeter a seus patrões. Estes se fazem pagar preços extorsivos, onerando o produto do trabalho nacional com enormes contas de lucros e regalias. Seu efeito mais danoso é remeter para fora o excedente econômico que produzem, em lugar de aplicá-lo aqui. De fato, ele se multiplica é no estrangeiro.” (ibidem, p. 250)

“A mais grave dessas continuidades reside na oposição entre os interesses do patronato empresarial, de ontem e de hoje, e os interesses do povo brasileiro. Ela se mantém ao longo de séculos pelo domínio do poder institucional e do controle da máquina do Estado nas mãos da mesma classe dominante, que faz prevalecer uma ordenação social e legal resistente a qualquer processo generalizável a toda a população. Ela é que regeu a economia colonial, altamente próspera para uma minoria, mas que condenava o povo à penúria. Ela é que deforma, agora, o próprio processo de industrialização, impedindo que desempenhe aqui o papel transformador que representou em outras sociedades. Ainda é ela que, na defesa de seus interesses antinacionais e antipopulares, permite a implantação das empresas multinacionais, através das quais a civilização pós-industrial se põe em marcha como um mero processo de atualização histórica dos povos fracassados na história.” (ibidem, p. 251)

“Modernizada reflexamente, apesar de jungida nessa institucionalidade retrógrada, a sociedade brasileira não conforma um remanescente arcaico da civilização ocidental, cujos agentes lhe deram nascimento, mas um dos seus ‘proletariados externos’, conscritos para prover certas matérias-primas e para produzir lucros exportáveis. Um proletariado externo atípico com respeito aos protagonistas históricos, assim designados por Toynbee (1959), porque não possui uma cultura original e porque sua própria classe dirigente é o agente de sua dominação externa.”


Em síntese:

“Nós, brasileiros, nesse quadro, somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo. Essa massa de nativos oriundos da mestiçagem viveu por séculos sem consciência de si, afundada na ‘ninguendade’. Assim foi até se definir como uma nova identidade étnico-nacional, a de brasileiros. Um povo, até hoje, em ser, na dura busca de seu destino.”