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segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

A desmoralização do nacionalismo

As eleições presidenciais sérvias, cujo primeiro turno aconteceu ontem (20/01), opõem duas forças que a imprensa internacional tratou de definir nitidamente: Tomislav Nikolic, "nacionalista", "pró-russo", "radical", "ultraconservador", de um lado, e Boris Tadic, "integracionista", "pró-europeu", "moderado", "liberal". Basta percorrer os olhos sobre as páginas e os sites de alguns importantes e influentes veículos de mídia regional e global (New York Times, Le Monde, El País, Al Jazeera, The Guardian, Folha de São Paulo) para ter-se a impressão de que os epítetos são sempre os mesmos, para um e o outro candidato. Desnecessário dizer quem nos é apresentado como o "mocinho" e quem o é como o "bandido" nesta disputa eleitoral...

Evidente que não coloco em questão essa divisão - ainda que simplista - que a imprensa e os círculos políticos têm manifestado. Quando mais não fosse, porque basta um breve lançar de olhos sobre o passado, as posições, os discursos e as propostas de ambas os candidatos para se entender o porquê de uma tal divisão. Convido o leitor que ainda não conhece os dois candidatos a esse exercício. Mesmo porque está em jogo o futuro de uma região extremamente delicada, a meio caminho da Europa Ocidental, do Oriente Médio e da Rússia.

Pois bem, o objetivo deste artigo não é analisar as eleições sérvias, mas, sim, questionar o porquê da demonização do nacionalismo e sua utilização como etiqueta desmoralizadora e portadora de certo perigo por parte daqueles que com ela são tachados. Por que nacionalismo tem-se tornado, a menos no discurso de muitos, uma força oposta aos valores democráticos e liberais? Por que o nacionalismo está sendo relegado ao limbo político - mais uma vez, pelo menos no discurso?

É tarefa difícil definir nacionalismo. Aceitando-se as idéias de Hobsbawm em seu magistral "Nações e Nacionalismo [...]", pode-se dizer que nacionalismo é uma ideologia segundo a qual o indivíduo deve fidelidade à nação, que não se sujeita, por sua vez, a força exterior alguma, mas apenas à soberania da própria nação/povo. Em sua origem histórica, o nacionalismo é absolutamente indissociável das idéias liberais e democráticas (para os padrões da época, bem entendido) que foram o propulsor teórico-intelectual das Revoluções Inglesa, Americana e Francesa. A partir da Revolução de 1789, o nacionalismo se identifica com as aspirações da classe média urbana liberal, que lutava contra as monarquias do Ancien Régime, fundadas sobre o legitimismo do direito divino dos príncipes, e não sobre o grosso da população que formava a "nação" - este, um conceito que nasce com a própria Revolução. À emancipação do indivíduo correspondia a emancipação da nação, corpo social ligado por elementos obetivos (língua, religição, passado comum etc.) e subjetivos (o sentimento de pertencimento, fundamental, aliás, para Hobsbawm como elemento determinante desta "comunidade imaginada" - Benedict Anderson - que é a nação).

A partir do século XIX, o nacionalismo foi utilizado como força questionadora dos impérios multinacionais que dominavam a Europa Oriental e Central. A nação deveria ser o fundamento da comunidade política, e cada nação/povo tinha o direito de autodeterminar-se, tomando em suas mãos as decisões sobre seu próprio destino e sua configuração sócio-política. Ainda nessa época, nacionalismo era uma ideologia identificada com as forças de esquerda e com os ideias liberais e democráticos, e será o ator principal das Revoluções de 1848, a "Primavera dos Povos".

A partir da década de 1870, com o fim do processo de unificação da Alemanha sob Bismarck, o nacionalismo gradualmente passa a se mover para o outro pólo do espectro político. Este processo, conservador em sua essência, se dava principalmente como resposta ao avanço das ideologias socialistas. Era como se o nacionalismo, até então utilizado como força de propulsão das reformas democráticas na Europa (especialmente Ocidental) passasse a ser utilizado como mecanismo de contenção de reformas mais amplas. O nacionalismo opunha-se a partir de então ao internacionalismo soviético, e assumia contornos cada vez mais conservadores.

Desnecessário comentar os estragos e catástrofes causados no século XX pelos nacionalismos, tanto de esquerda como de direita (nacionalismo de esquerda, sim, por mais paradoxal que possa parecer: a URSS a partir de Stálin é o grande bastião do nacionalismo de esquerda do século XX). Este talvez seja o fato explicativo para a degradação que o nacionalismo, como força política, sofreu, especialmente na Europa. Isso significa, no entanto, que se deva abandonar o nacionalismo, que se deva jogá-lo na lata de lixo da História como ideologia/força/movimento diametralmente oposto aos valores da democracia contemporânea?

Fazê-lo significa ignorar a própria História, na medida em que, como visto, o nacionalismo nasceu como depositário das idéias liberais e iluministas, e atuou como tal no campo político por quase um século. O que se deve rejeitar, sim, são os excessos abertamente antidemocráticos legitimados em nome da nação, como a xenofobia. Em nome do nacionalismo, legitimaram-se os maiores massacres - guerras, conflitos, genocídios, a terminologia não importa neste momento - de que o homem foi, ao mesmo tempo, perpetrador e vítima.

O mundo, no entanto, é, como desde sempre, dividio em comunidades que se concebem a si próprias como únicas, diferentes de todas as demais. Na atualidade, estas comunidades são os Estados nacionais. A nação, em essência, é a comunidade que encontra expressão política no Estado, e não mais se funda sobre elementos como a língua, religião etc. - basta um olhar rápido sobre os Estados multiétnicos (se é que etnia ainda é um conceito a ser levado em consideração...), multilingüísticos, multi-religiosos, "multinacionais", em essência. A despeito do integracionismo e do globalismo, o nacionalismo é uma força poderosa que continua mobilizando mentes e corações de bilhões de pessoas em todo o globo. É uma força saudável, como toda força que mantenha a coesão interna de um corpo social que se imagina único; e como tal, é da mesma essência das forças que mantiveram unidos tribos, clãs, feudos, reinos e toda uma miríade de comunidades em que o homem se agrupou desde que se descobriu um zoon politikon, na terminologia de Aristóteles.

O nacionalismo está presente, e se manifesta das mais variadas formas: uma bandeira americana pendurada no alpendre de uma casa, a magia que leva 180 milhões de pessoas a se reunirem diante de um aparelho de TV de quatro em quatro anos, o espetáculo dos Jogos Olímpicos e do desfile de mais de 200 delegações, todas orgulhosamente portando sua bandeira e representando sua "nação", o voluntarismo de milhares de jovens que arriscam suas vidas no Oriente Médio por sua "nação", o culto de panthéons e monumentos aos heróis "nacionais", o zelo com que se realiza plebiscito para se decidir sobre a letra de um hino "nacional" (como aconteceu recentemente na Espanha), o extremismo radical que sustenta grupos como o ETA, entre tantos outros. Em si mesmo, o nacionalismo não é uma ideologia xenófoba, anti-democrática e antiliberal. Como todas as coisas à disposição do homem, os problemas nascem dos usos que a ele conferimos. É necessário cuidado, portanto, quando se demoniza o nacionalismo. Vale não esquecer que todos nós a ele nos apegamos - e que seja de forma saudável e racional.

3 comentários:

J.R. Taruhn disse...

O nacionalismo produziu bons frutos, mas a idéia do estado homogêneo continua fazendo grandes estragos.

A causa de grande parte dos conflitos não é o nacionalismo, mas o modelo ao qual minorias precisam adaptar-se. Ainda nos falta um modelo de estado que possa lhes fornecer uma alternativa diferente de submissão ou cisão.

Talvez mesmo instituições "arcaicas" como os conselhos de líderes sejam mais úteis para evitar conflitos e favorecer o desenvolvimento de muitos países do que nosso tradicional modelo de estado democrático.

Anônimo disse...

Caro jr taruhn

A idéia de Estado homogêneo tem sido abandonada em quase toda parte, a favor do reconhecimento da diversidade e do pluralismo. Creio que não nos falta um modelo de Estado que possa abarcar as minorias democraticamente. Não nos esqueçamos do modelos de autonomismo ou semifederalismo que têm-se provado um sucesso em alguns países, como a Suíça e mesmo o Canadá.

Problemas há, no entanto; basta ver o exemplo da Bélgica, mergulhada numa crise política (para os padrões europeus), instigada pelo nacionalismo flamengo, que questiona a própria existência do Estado belga. Creio, no entanto, que o problema não seja o nacionalismo em si, mas as conseqüências que o extremismo ou fanatismo (fala-se tanto em fanatismo religioso, mas se esquece do fanatismo laico, nacional) podem acarretar.

O problema das minorias é amplamente lidado pelo Direito Internacional e pela Política Internacional desde pelo menos o final da I Guerra. Não nos esqueçamos de que as Nações Unidas reconheceram o direito à autodeterminação dos povos que não são representados politicamente no quadro democrático de seus países (resolução AGNU 1514). Talvez o que se possa apontar como solução seja a tolerância e a convivência dentro de um quadro político-institucional democrático, em vez de querer mudar o próprio regime da democracia contemporânea, como a conhecemos.

Obrigado pelo comentário!

Abraço.

Anônimo disse...

Quantos livros de história não nos trazem a tal frase clichê que a Rev. Francesa espalhou pela Europa o câncer do nacionalismo?

A demonização acontece na esteira de uma história européia marcada por guerras e conflitos inter-estatais em que um povo para triunfar, necessariamente, deveria subjugar outro.

Foram, talvez, estas vitórias militares que ajudaram a soldar a convicção dos cidadãos da existência do legado comum, da cultura comum que a todos contempla e que, segundo B. Anderson, é condição essencial para a formação da tal comunidade imaginada. Pode ser que a partir desta realidade é que o nacionalismo tenha ganhado esta aura negativa que nele se colou, quiçá, para sempre..