Caros
Certamente todos vocês já estão cientes das mudanças que ocorrerão no CACD 2008. Para muitos pode ter sido uma surpresa - apesar das insistentes advertências do Maurício! Mas será que essas mudanças dificultam o concurso? Ou são apenas um impacto, um susto passageiro, que não acarretará maiores problemas aos candidatos que se vinham preparando segundo os TPSs de 2006 e 2007?
Sei que o Maurício terá muito a acrescentar, mas aqui vão minhas impressões. Creio que a grande dificuldade se apresenta àqueles que concentraram sua preparação nas disciplinas cobradas no TPS de 2007, ignorando as demais. Mas ainda assim, este problema deverá ter proporções menores do que se imagina: os que realmente estavam preparando-se para o concurso, nessa altura do tempo - a meio ano da Terceira Fase - já devem ter visto todas as disciplinas, inclusive línguas. Afinal de contas, o conteúdo desta fase é extremamente amplo, o que exige muito mais do que seis meses de preparação.
Um ponto positivo do CACD 2008, ademais, é a inclusão de outros idiomas. Isso não apenas beneficia aqueles que tiveram contato com outros idiomas que não os 'tradicionais', mas também traz para o Itamaraty pessoas que conhecem línguas que são ou serão, cada vez mais, valorizadas no mundo diplomático - como há de ser o chinês.
Estas duas pequenas alterações não dificultam, a meu ver, o CACD, que mantém sua mais do que tradicional seletividade e seu rigor. Aos candidatos que já há alguns anos têm-se preparado para o concurso, essas mudanças não acarretarão dificuldades. Continuem os estudos, e aguardem o Edital!
Abraços e até uma próxima vez!
PS: Um registro triste: a Diplomacia brasileira perdeu um de seus grandes expoentes. Faleceu no dia 26, aos 89 anos, o Embaixador Mário Gibson Alves Barboza. Acho que a resenha publicada aqui fica como uma pequeníssima homenagem a um grande homem...
quarta-feira, 28 de novembro de 2007
quarta-feira, 21 de novembro de 2007
O G-4 e a Reforma do Conselho de Segurança - Final
O G-4 foi criado formalmente em 21 de setembro de 2004, logo após uma reunião que, a convite do Primeiro-Ministro do Japão, Junichiro Koizumi, envolveu o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Vice Primeiro-Ministro da Alemanha, Joschka Fischer, e o Primeiro-Ministro da Índia, Manmohan Singh. A reunião aconteceu em Nova York, às vésperas da inauguração do 59º período de sessões da Assembléia Geral. Em comunicado à imprensa, os quatro mandatários afirmaram a importância da reforma das Nações Unidas, inclusive do Conselho de Segurança, que "precisa refletir as realidades da comunidade internacional do século XXI". Defendiam a inclusão, no Conselho, de "forma permanente, [de] países que tenham a vontade e a capacidade de assumir as responsabilidades mais significativas em relação à manutenção da paz e segurança internacionais". Pela declaração, expressavam ainda seus apoios mútuos a suas candidaturas a membros permanentes, apontando, igualmente, para a necessidade de inclusão de países africanos na mesma categoria de membros.
Ao longo do final de 2004 e no primeiro semestre de 2005, o G-4 continuou a reunir-se com vistas a desenvolver uma estratégia única para lograr a reforma do Conselho de Segurança. Após intensas consultas mútuas, o G-4 fez circular, em maio de 2005, entre os Estados membros das Nações Unidas, uma proposta de reforma do Conselho, baseada no Modelo A do Plano Razali e do relatório "In Larger Freedom". Propunha o G-4 a criação de seis novos assentos permanentes com direito a veto. A proposta, como se poderia prever, foi recebida com frieza por grande maioria dos membros da Organização, por conta, em especial, da extensão do poder de veto a eventuais novos membros permanentes.
Em 6 de julho de 2005, o Grupo apresentaria um projeto de resolução à Assembléia Geral, que refletia sua proposta inicial; seis novos membros permanentes (dois da África, dois da Ásia, um da Europa e um da América Latina) e quatro novos membros não-permanentes. A principal alteração ficava por conta do poder de veto - o G-4 propunha que, inicialmente, os novos membros permanentes não exerceriam poder de veto, questão sobre a qual decidiria de forma definitiva uma conferência de revisão a ser realizada 15 anos após a entrada em vigor da reforma proposta (para o draft de resolução, veja-se o documento A/59/L.64).
Os desdobramentos dos debates revelaram um racha incontestável na Assembléia Geral. Em 18 de julho, a União Africana (UA) - com quem o G-4 entretinha todo tipo de consultas e negociações - apresentou uma proposta radical, que previa a inclusão de 11 membros, incluindo 6 permanentes com direito a veto (A/59/L.67). Na tentativa de dobrar a oposição de parte dos membros da Assembléia, o G-4, ao abrir mão do poder de veto, acabou perdendo o apoio dos 53 Estados da UA.
Três dias após, um outro grupo, o Uniting for Consensus, formado por países que se opunham ao plano de reforma do G-4, apresentou uma terceira proposta, pela qual defendia a inclusão apenas de 10 assentos não-permanentes e a abolição da não-reeleição para mandatos consecutivos (A/59/L.68).
Aos desacordos entre três propostas diferentes juntou-se a oposição da China e dos Estados Unidos à reforma do Conselho - apesar de os dois países defenderem "uma reforma", é pouco provável que isso vá além de um exercício retórico. Aprovar a reforma do Conselho de Segurança passou a ser tarefa impossível. O clima de otimismo criado pela Cúpula Mundial de setembro de 2005 foi efêmero, e não conseguiu suplantar os profundos desacordos existentes entre os membros quanto à reforma do órgão mais importante da ONU.
A 59ª Assembléia Geral chegou ao fim sem que as discussões avançassem. A Cúpula Mundial, da mesma forma, não produziu qualquer acordo substantivo - a mídia foi prolixa em registrar os esforços do então embaixador dos Estados Unidos, John Bolton, em minar o documento final que já havia sido produzido, em versão preliminar, para a aprovação dos Chefes de Estado e de governo. A oposição dos Estados Unidos e o desacordo entre os membros da ONU impediram qualquer acordo sobre a reforma do órgão, e o mesmo resultado se verificou na 60ª Assembléia Geral.
Em 6 de janeiro de 2006, o Japão recusou-se a apoiar uma nova proposta colocada em discussão por Alemanha, Brasil e Índia. Não obstante, os quatro governos negam o fim do G-4, e afirmam que continuarão a concertar posições comuns sobre a reforma do Conselho. Pode-se especular sobre os motivos que levaram Tóquio a não apoiar os outros membros do Grupo em mais uma tentativa de emplacar a desejada reforma. Sabe-se que os Estados Unidos apóiam explicitamente a admissão do Japão, o que poderia ter feito Tóquio reconsiderar sua posição no âmbito do G-4; pode-se apostar, por outro lado, que, ao se afastar do Grupo, o Japão esteja lançando mão de um estratagema, com a intenção de dobrar a resistência da China a apoiar a posição do Grupo (o grande problema da China é a admissão do Japão como membro permanente). Especulações, apenas, mas que merecem certa reflexão.
A agenda do 61º período de sessões da Assembléia Geral inclui a discussão sobre a reforma do Conselho de Segurança (item "Question on the Equitable Representation on and Increase in the Membership of the Security Council). Este é um tema que deverá ser acompanhado de perto, não apenas por ser de importância para os candidatos do CACD, mas por envolver diretamente interesses da Diplomacia brasileira.
Abraços!
Ao longo do final de 2004 e no primeiro semestre de 2005, o G-4 continuou a reunir-se com vistas a desenvolver uma estratégia única para lograr a reforma do Conselho de Segurança. Após intensas consultas mútuas, o G-4 fez circular, em maio de 2005, entre os Estados membros das Nações Unidas, uma proposta de reforma do Conselho, baseada no Modelo A do Plano Razali e do relatório "In Larger Freedom". Propunha o G-4 a criação de seis novos assentos permanentes com direito a veto. A proposta, como se poderia prever, foi recebida com frieza por grande maioria dos membros da Organização, por conta, em especial, da extensão do poder de veto a eventuais novos membros permanentes.
Em 6 de julho de 2005, o Grupo apresentaria um projeto de resolução à Assembléia Geral, que refletia sua proposta inicial; seis novos membros permanentes (dois da África, dois da Ásia, um da Europa e um da América Latina) e quatro novos membros não-permanentes. A principal alteração ficava por conta do poder de veto - o G-4 propunha que, inicialmente, os novos membros permanentes não exerceriam poder de veto, questão sobre a qual decidiria de forma definitiva uma conferência de revisão a ser realizada 15 anos após a entrada em vigor da reforma proposta (para o draft de resolução, veja-se o documento A/59/L.64).
Os desdobramentos dos debates revelaram um racha incontestável na Assembléia Geral. Em 18 de julho, a União Africana (UA) - com quem o G-4 entretinha todo tipo de consultas e negociações - apresentou uma proposta radical, que previa a inclusão de 11 membros, incluindo 6 permanentes com direito a veto (A/59/L.67). Na tentativa de dobrar a oposição de parte dos membros da Assembléia, o G-4, ao abrir mão do poder de veto, acabou perdendo o apoio dos 53 Estados da UA.
Três dias após, um outro grupo, o Uniting for Consensus, formado por países que se opunham ao plano de reforma do G-4, apresentou uma terceira proposta, pela qual defendia a inclusão apenas de 10 assentos não-permanentes e a abolição da não-reeleição para mandatos consecutivos (A/59/L.68).
Aos desacordos entre três propostas diferentes juntou-se a oposição da China e dos Estados Unidos à reforma do Conselho - apesar de os dois países defenderem "uma reforma", é pouco provável que isso vá além de um exercício retórico. Aprovar a reforma do Conselho de Segurança passou a ser tarefa impossível. O clima de otimismo criado pela Cúpula Mundial de setembro de 2005 foi efêmero, e não conseguiu suplantar os profundos desacordos existentes entre os membros quanto à reforma do órgão mais importante da ONU.
A 59ª Assembléia Geral chegou ao fim sem que as discussões avançassem. A Cúpula Mundial, da mesma forma, não produziu qualquer acordo substantivo - a mídia foi prolixa em registrar os esforços do então embaixador dos Estados Unidos, John Bolton, em minar o documento final que já havia sido produzido, em versão preliminar, para a aprovação dos Chefes de Estado e de governo. A oposição dos Estados Unidos e o desacordo entre os membros da ONU impediram qualquer acordo sobre a reforma do órgão, e o mesmo resultado se verificou na 60ª Assembléia Geral.
Em 6 de janeiro de 2006, o Japão recusou-se a apoiar uma nova proposta colocada em discussão por Alemanha, Brasil e Índia. Não obstante, os quatro governos negam o fim do G-4, e afirmam que continuarão a concertar posições comuns sobre a reforma do Conselho. Pode-se especular sobre os motivos que levaram Tóquio a não apoiar os outros membros do Grupo em mais uma tentativa de emplacar a desejada reforma. Sabe-se que os Estados Unidos apóiam explicitamente a admissão do Japão, o que poderia ter feito Tóquio reconsiderar sua posição no âmbito do G-4; pode-se apostar, por outro lado, que, ao se afastar do Grupo, o Japão esteja lançando mão de um estratagema, com a intenção de dobrar a resistência da China a apoiar a posição do Grupo (o grande problema da China é a admissão do Japão como membro permanente). Especulações, apenas, mas que merecem certa reflexão.
A agenda do 61º período de sessões da Assembléia Geral inclui a discussão sobre a reforma do Conselho de Segurança (item "Question on the Equitable Representation on and Increase in the Membership of the Security Council). Este é um tema que deverá ser acompanhado de perto, não apenas por ser de importância para os candidatos do CACD, mas por envolver diretamente interesses da Diplomacia brasileira.
Abraços!
terça-feira, 20 de novembro de 2007
A INDÚSTRIA DO BOATO
Antes de retornar às discussões específicas em relação à terceira fase do CACD, acredito ser necessário fazer uma discussão de caráter mais geral quanto a um dos problemas mais graves no processo de preparação dos candidatos, principalmente aqueles que estão longe dos grandes centros de preparação: O BOATO.
É natural que os cursos preparatórios e seus professores tentem, de alguma forma, prever os conteúdos possíveis para o CACD. É por meio desse processo de "vidência" que nascem os tão conhecidos "temas quentes". Embora eu reconheça que muitos do boatos surgem com alguma base factual, em geral não passam de especulações e tentativas de previsão que tendem prejudicar o processo de preparação, principalmente quando ainda há tempo para que o candidato procure adquirir um visão abrangente da bibliografia e do conteúdo programático do CACD , mas abre mão disso devido a um boato.
Os prejuízos possíveis para quem se torna um consumidor da "indústria do boato" são variados e muito significativos. Primeiro, o candidato tenderá a restringir seu estudo aos ditos "temas quentes", que podem ser mornos ou até mesmo frios. Em 2007, por exemplo, havia a certeza absoluta de que os temas de meio ambiente e energia estariam presentes em alguma das provas. O resultado todos sabem qual foi... Eu mesmo me concentrei absurdamente em tais temas e deixei de lado temas como zona costeira, o que me custou pelo menos 15 pontos na prova de geografia. Segundo, os "temas quentes" e os boatos criados em torno deles podem contribuir para que os formuladores das provas evitem abordar temas que serão respondidos com "discurso pronto". Se o candidato focar-se somente nesses temas, o resultado pode ser desastroso. Como responder uma questão de relações bilaterais Brasil-Japão, algo que ninguém sequer cogitava, sem uma base ampla de conhecimentos da política externa brasileira e a leitura de alguns artigos sobre as relações Brasil-Ásia? Por último, os boatos ocupam tempo, gastam energia, estressam, aumentam o nervosismo e quase sempre estão errados.
De forma alguma estou afirmando que não se deve tentar prever possíveis temas que serão abordados no CACD. Há temas que não são "quentes", mas que são relativamente evidentes em função de sua importância e seus contexto. Em 2007, por exemplo, o temas relativos aos 50 anos da UE e às relações Brasil-EUA, depois da troca de visitas presidenciais, eram previsíveis. Entretanto, quem se concentrou somente nos temas previsíveis teve problemas com os temas de relações bilaterais e da atuação das empresas brasileiras na América do Sul. Estou afirmando que os candidatos DEVEM ter uma visão abrangente do conteúdo programático, e não se deixarem envolver pela tentação de simplificar a preparação e cair numa "estrada para a perdição".
O edital ainda não foi divulgado, não sabemos ainda quando o será. Se o calendário for mantido, faltam cerca de 6 meses para o inicio da terceira fase. Ainda não é o momento de direcionar os estudos para temas específicos em detrimento de boa parte do conteúdo programático. Sequer sabemos se a estrutura do concurso, especialmente a do TPS, será mantida. Como ficam aqueles que forem surpreendidos por alguma mudança significativa, se houver?
Tenho consciência da dificuldade de evitar tais equívocos em função da pressão sufocante que os boatos exercem sobre nós nos ambientes de preparação, em função da competitividade e do medo de errar e perder um ano de preparação. Reforço, entretanto, que aqueles que têm uma preparação mais abrangente correm menos riscos.
Lutar contra a "indústria do boato" é uma batalha quixotesca, mas o que seria do mundo sem os Quixotes?
É natural que os cursos preparatórios e seus professores tentem, de alguma forma, prever os conteúdos possíveis para o CACD. É por meio desse processo de "vidência" que nascem os tão conhecidos "temas quentes". Embora eu reconheça que muitos do boatos surgem com alguma base factual, em geral não passam de especulações e tentativas de previsão que tendem prejudicar o processo de preparação, principalmente quando ainda há tempo para que o candidato procure adquirir um visão abrangente da bibliografia e do conteúdo programático do CACD , mas abre mão disso devido a um boato.
Os prejuízos possíveis para quem se torna um consumidor da "indústria do boato" são variados e muito significativos. Primeiro, o candidato tenderá a restringir seu estudo aos ditos "temas quentes", que podem ser mornos ou até mesmo frios. Em 2007, por exemplo, havia a certeza absoluta de que os temas de meio ambiente e energia estariam presentes em alguma das provas. O resultado todos sabem qual foi... Eu mesmo me concentrei absurdamente em tais temas e deixei de lado temas como zona costeira, o que me custou pelo menos 15 pontos na prova de geografia. Segundo, os "temas quentes" e os boatos criados em torno deles podem contribuir para que os formuladores das provas evitem abordar temas que serão respondidos com "discurso pronto". Se o candidato focar-se somente nesses temas, o resultado pode ser desastroso. Como responder uma questão de relações bilaterais Brasil-Japão, algo que ninguém sequer cogitava, sem uma base ampla de conhecimentos da política externa brasileira e a leitura de alguns artigos sobre as relações Brasil-Ásia? Por último, os boatos ocupam tempo, gastam energia, estressam, aumentam o nervosismo e quase sempre estão errados.
De forma alguma estou afirmando que não se deve tentar prever possíveis temas que serão abordados no CACD. Há temas que não são "quentes", mas que são relativamente evidentes em função de sua importância e seus contexto. Em 2007, por exemplo, o temas relativos aos 50 anos da UE e às relações Brasil-EUA, depois da troca de visitas presidenciais, eram previsíveis. Entretanto, quem se concentrou somente nos temas previsíveis teve problemas com os temas de relações bilaterais e da atuação das empresas brasileiras na América do Sul. Estou afirmando que os candidatos DEVEM ter uma visão abrangente do conteúdo programático, e não se deixarem envolver pela tentação de simplificar a preparação e cair numa "estrada para a perdição".
O edital ainda não foi divulgado, não sabemos ainda quando o será. Se o calendário for mantido, faltam cerca de 6 meses para o inicio da terceira fase. Ainda não é o momento de direcionar os estudos para temas específicos em detrimento de boa parte do conteúdo programático. Sequer sabemos se a estrutura do concurso, especialmente a do TPS, será mantida. Como ficam aqueles que forem surpreendidos por alguma mudança significativa, se houver?
Tenho consciência da dificuldade de evitar tais equívocos em função da pressão sufocante que os boatos exercem sobre nós nos ambientes de preparação, em função da competitividade e do medo de errar e perder um ano de preparação. Reforço, entretanto, que aqueles que têm uma preparação mais abrangente correm menos riscos.
Lutar contra a "indústria do boato" é uma batalha quixotesca, mas o que seria do mundo sem os Quixotes?
domingo, 18 de novembro de 2007
O G-4 e a Reforma do Conselho de Segurança - Parte I
Caros amigos do Diálogo Diplomático,
Estou de volta depois de uma semana, desta vez para tratar de um dos temas que mais têm concentrado a atenção da política externa brasileira: a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Talvez de forma surpreendente, não houve ainda no concurso uma questão específica sobre este assunto, que pode - eu disse pode - ser uma aposta para as próximas provas.
A reforma do Conselho de Segurança tem sido debatida nas Nações Unidas pelo menos desde 1993, quando foi estabelecido por resolução da Assembléia Geral (A/48/26) o chamado Open-Ended Working Group (OEWG), encarregado de estudar as principais dimensões de uma eventual reforma do Conselho e, a partir de consultas com os Estados membros, apresentar sugestões pertinentes. Em 1997, o OEWG produziu seu primeiro resultado concreto, o chamado Plano Razali, que propunha a adição de cinco membros permanentes e de quatro não-permanentes ao Conselho. O Plano propunha ainda um draft de resolução da Assembléia Geral que previa, inclusive, a data da eleição dos novos membros permanentes: 28 de janeiro de 1998. Evidentemente, não se logrou reforma alguma, em grande parte porque superestimou-se o clima de euforia que viviam as Nações Unidas no imediato pós-Guerra Fria, e que começaria a ser desfeito com as crises da Somália (1993) e de Ruanda (1994), dando mais visibilidade ainda à relativa paralisia do principal órgão das Nações Unidas em lidar com problemas e desafios típicos do pós-Guerra Fria.
O ímpeto por reformas da Organização como um todo seria retomado durante a gestão de Kofi Annan (1997-2007). As mudanças pelas quais passou a cena internacional no período foram decisivas para alimentar a percepção de que a ONU deveria ser reformada, sob pena de não conseguir fazer frente aos desafios de um mundo radicalmente diferente daquele em que fora criada, em 1945, e de não conseguir cumprir os objetivos instituídos pela Carta de São Francisco. O 11 de Setembro e, especialmente, a II Guerra do Golfo confrontaram as Nações Unidas como marcos de uma nova era para a qual a Organização parecia não estar preparada.
Em 2003, Annan instalou um painel composto por 16 pessoas eminentes no cenário internacional, o Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança. O Painel apresentaria seu relatório em novembro de 2004 - "A More Secure World: Our Shared Responsibility" -, em que reafirmaria a necessidade de reforma do Conselho de Segurança, pautada por quatro princípios fundamentais: 1) aumentar o envolvimento dos Estados membros que mais contribuem para com a Organização; 2) aumentar a representatividade do Conselho; 3) manter sua eficiência; e 4) torná-lo mais democrático e transparente. Com base nestes princípios, o relatório sugeria ainda duas alternativas para a reforma do Conselho - o que, por si, já refletia a dificuldade de levar a cabo uma reforma abrangente, pois nem mesmo o Painel fora capaz de chegar a uma sugestão consensual entre seus 16 participantes. O Modelo A previa a admissão de seis novos membros permanentes, sem direito a veto, dos quais dois seriam da África, dois da Ásia, um das Américas e um da Europa. O Modelo B previa a admissão apenas de membros não-permanentes: oito assentos com mandatos de dois anos renováveis e dois assentos com mandatos de dois anos não-renováveis.
Em março de 2005, Kofi Annan publicou um extenso relatório, no qual defendia a necessidade de uma reforma abrangente da Organização. "In Larger Freedom: Towards Development, Security, and Human Rights for All" afirmava, em relação ao Conselho de Segurança, que este órgão "reflete o mundo de 1945, não o do século XXI", e que "ele deve ser reformulado de modo a incluir os Estados que mais contribuem para com a Organização [...] e a representar de forma mais ampla o atual corpo de membros da ONU". Segundo Annan, chegara o momento oportuno de se empreender uma reforma abrangente da Organização, e os chefes de Estado e de governo de todo o mundo deveriam aproveitar a realização da Cúpula Mundial (14 a 16 de setembro de 2005) para fazê-lo.
Parecia iniciar-se um momento único na história das Nações Unidas, e a reforma de seus principais órgãos surgia pela primeira vez como algo perfeitamente realizável. Estados que havia muito nutriam expectativas quanto a uma reforma do Conselho de Segurança passaram a agir e organizar-se em torno de propostas que, uma vez mais, refletiriam a total falta de consenso quanto a que tipo de reforma empreender.
Creio que isto oferece um razoável pano de fundo para se entender a criação e a atuação do G-4, que será tema de um próximo texto. Espero que este tenha sido útil para fornecer-lhes os primeiros passos para um estudo mais aprofundado da questão, que continua a se desenrolar no âmbito das Nações Unidas. A esse respeito, vale a pena acompanhar os desdobramentos: a reforma do Conselho de Segurança será, mais uma vez, tema da agenda dos debates da Assembléia Geral nos próximos meses.
Abraços e até uma próxima vez!
Estou de volta depois de uma semana, desta vez para tratar de um dos temas que mais têm concentrado a atenção da política externa brasileira: a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Talvez de forma surpreendente, não houve ainda no concurso uma questão específica sobre este assunto, que pode - eu disse pode - ser uma aposta para as próximas provas.
A reforma do Conselho de Segurança tem sido debatida nas Nações Unidas pelo menos desde 1993, quando foi estabelecido por resolução da Assembléia Geral (A/48/26) o chamado Open-Ended Working Group (OEWG), encarregado de estudar as principais dimensões de uma eventual reforma do Conselho e, a partir de consultas com os Estados membros, apresentar sugestões pertinentes. Em 1997, o OEWG produziu seu primeiro resultado concreto, o chamado Plano Razali, que propunha a adição de cinco membros permanentes e de quatro não-permanentes ao Conselho. O Plano propunha ainda um draft de resolução da Assembléia Geral que previa, inclusive, a data da eleição dos novos membros permanentes: 28 de janeiro de 1998. Evidentemente, não se logrou reforma alguma, em grande parte porque superestimou-se o clima de euforia que viviam as Nações Unidas no imediato pós-Guerra Fria, e que começaria a ser desfeito com as crises da Somália (1993) e de Ruanda (1994), dando mais visibilidade ainda à relativa paralisia do principal órgão das Nações Unidas em lidar com problemas e desafios típicos do pós-Guerra Fria.
O ímpeto por reformas da Organização como um todo seria retomado durante a gestão de Kofi Annan (1997-2007). As mudanças pelas quais passou a cena internacional no período foram decisivas para alimentar a percepção de que a ONU deveria ser reformada, sob pena de não conseguir fazer frente aos desafios de um mundo radicalmente diferente daquele em que fora criada, em 1945, e de não conseguir cumprir os objetivos instituídos pela Carta de São Francisco. O 11 de Setembro e, especialmente, a II Guerra do Golfo confrontaram as Nações Unidas como marcos de uma nova era para a qual a Organização parecia não estar preparada.
Em 2003, Annan instalou um painel composto por 16 pessoas eminentes no cenário internacional, o Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança. O Painel apresentaria seu relatório em novembro de 2004 - "A More Secure World: Our Shared Responsibility" -, em que reafirmaria a necessidade de reforma do Conselho de Segurança, pautada por quatro princípios fundamentais: 1) aumentar o envolvimento dos Estados membros que mais contribuem para com a Organização; 2) aumentar a representatividade do Conselho; 3) manter sua eficiência; e 4) torná-lo mais democrático e transparente. Com base nestes princípios, o relatório sugeria ainda duas alternativas para a reforma do Conselho - o que, por si, já refletia a dificuldade de levar a cabo uma reforma abrangente, pois nem mesmo o Painel fora capaz de chegar a uma sugestão consensual entre seus 16 participantes. O Modelo A previa a admissão de seis novos membros permanentes, sem direito a veto, dos quais dois seriam da África, dois da Ásia, um das Américas e um da Europa. O Modelo B previa a admissão apenas de membros não-permanentes: oito assentos com mandatos de dois anos renováveis e dois assentos com mandatos de dois anos não-renováveis.
Em março de 2005, Kofi Annan publicou um extenso relatório, no qual defendia a necessidade de uma reforma abrangente da Organização. "In Larger Freedom: Towards Development, Security, and Human Rights for All" afirmava, em relação ao Conselho de Segurança, que este órgão "reflete o mundo de 1945, não o do século XXI", e que "ele deve ser reformulado de modo a incluir os Estados que mais contribuem para com a Organização [...] e a representar de forma mais ampla o atual corpo de membros da ONU". Segundo Annan, chegara o momento oportuno de se empreender uma reforma abrangente da Organização, e os chefes de Estado e de governo de todo o mundo deveriam aproveitar a realização da Cúpula Mundial (14 a 16 de setembro de 2005) para fazê-lo.
Parecia iniciar-se um momento único na história das Nações Unidas, e a reforma de seus principais órgãos surgia pela primeira vez como algo perfeitamente realizável. Estados que havia muito nutriam expectativas quanto a uma reforma do Conselho de Segurança passaram a agir e organizar-se em torno de propostas que, uma vez mais, refletiriam a total falta de consenso quanto a que tipo de reforma empreender.
Creio que isto oferece um razoável pano de fundo para se entender a criação e a atuação do G-4, que será tema de um próximo texto. Espero que este tenha sido útil para fornecer-lhes os primeiros passos para um estudo mais aprofundado da questão, que continua a se desenrolar no âmbito das Nações Unidas. A esse respeito, vale a pena acompanhar os desdobramentos: a reforma do Conselho de Segurança será, mais uma vez, tema da agenda dos debates da Assembléia Geral nos próximos meses.
Abraços e até uma próxima vez!
quarta-feira, 14 de novembro de 2007
Política Internacional - 3ª Fase
Caros amigos do Diálogo Diplomático
A convite do Maurício, sou o mais novo colaborador deste blog, e espero contribuir para com todos aqueles que estão preparando-se para o CACD e, de modo geral, todos os leitores que se interessem por Política Externa e Diplomacia.
Meu nome é Fábio Simão Alves, sou formado em Relações Internacionais pela USP e sou diplomata. Fui aprovado este ano. Pretendo compartilhar com todos vocês um pouco do que aprendi durante minha longa preparação. Política Internacional será o tema da maior parte dos meus comentários, por ser não apenas uma das minhas paixões, mas, também, a disciplina em que tive o melhor desempenho no CACD. Não esperem encontrar apenas dicas para o Concurso, no entanto: tenho também a intenção de escrever alguns artigos sobre o assunto - lembrando que estes refletirão sempre minha opinião, e jamais, necessariamente, a do Itamaraty.
Para começar, vou dar algumas dicas que, creio, serão úteis para a prova de Política Internacional da 3ª fase. Aproveitando que o Maurício já escreveu sobre a disciplina no TPS, deixarei esta fase de lado.
A prova de PI assusta já pelo conteúdo cobrado: a bibliografia é vastíssima, e cobre uma variedade de temas: política internacional, política externa brasileira, teoria das relações internacionais, questões internacionais contemporâneas etc. Em que se concentrar?
Acredito que política externa brasileira deva ser o norte dos estudos para PI. Das cinco questões do concurso este ano, quatro versavam sobre política externa do País. Em segundo lugar, creio que um enfoque analítico é fundamental; é preciso saber trabalhar com os conceitos e temas de PI, porque o tipo de questão pode induzir o candidato a privilegiar um enfoque descritivo, histórico, quase narrativo, e isso não é o que se pede no Concurso...
Ler os livros da bibliografia indicada é fundamental - mas não todos, como o Maurício já deve ter dito. Muitos são dispensáveis. Alguns, em contraste, são quase obrigatórios. Amado Cervo & Clodoaldo Bueno e Henrique Altemani são dois deles. Outros que são recomendáveis são Robert Gilpin, Flávio Sombra Saraiva, Moniz Bandeira, José Guilhon Albuquerque e Paulo Vizentini.
Os livros são essenciais, mas não suficientes. Manter-se a par da política internacional na atualidade, no dia-a-dia mesmo, é importantíssimo. Considero leituras obrigatórias revistas especializadas (Política Externa, Contexto Internacional, Foreign Affairs...), artigos publicados por Diplomatas (RelNet é referência óbvia) e mídia internacional (The Economist é altamente recomendável). Este tipo de leitura não apenas mantém o candidato atualizado quanto à política internacional, mas também ajuda-lhe a desenvolver o senso crítico e a capacidade de analisar temas internacionais contemporâneos.
Bom, para um primeiro contato, creio ter atingido o objetivo, que era fornecer dicas mais gerais sobre a prova de PI. Evidentemente, as dicas nunca se esgotam em algumas poucas linhas; ademais, cada candidato desenvolve, ao longo de sua preparação, uma rotina e um método de estudos próprios, com o que descobre, por fim, suas próprias dicas.
Uma última sugestão (e me desculpem a obviedade): não esperem descobrir segredos ou truques para passar no CACD. A maior dica que eu posso dar - e nesta insistirei sempre - é: estudem. Muito.
Abraços e até uma próxima oportunidade!
A convite do Maurício, sou o mais novo colaborador deste blog, e espero contribuir para com todos aqueles que estão preparando-se para o CACD e, de modo geral, todos os leitores que se interessem por Política Externa e Diplomacia.
Meu nome é Fábio Simão Alves, sou formado em Relações Internacionais pela USP e sou diplomata. Fui aprovado este ano. Pretendo compartilhar com todos vocês um pouco do que aprendi durante minha longa preparação. Política Internacional será o tema da maior parte dos meus comentários, por ser não apenas uma das minhas paixões, mas, também, a disciplina em que tive o melhor desempenho no CACD. Não esperem encontrar apenas dicas para o Concurso, no entanto: tenho também a intenção de escrever alguns artigos sobre o assunto - lembrando que estes refletirão sempre minha opinião, e jamais, necessariamente, a do Itamaraty.
Para começar, vou dar algumas dicas que, creio, serão úteis para a prova de Política Internacional da 3ª fase. Aproveitando que o Maurício já escreveu sobre a disciplina no TPS, deixarei esta fase de lado.
A prova de PI assusta já pelo conteúdo cobrado: a bibliografia é vastíssima, e cobre uma variedade de temas: política internacional, política externa brasileira, teoria das relações internacionais, questões internacionais contemporâneas etc. Em que se concentrar?
Acredito que política externa brasileira deva ser o norte dos estudos para PI. Das cinco questões do concurso este ano, quatro versavam sobre política externa do País. Em segundo lugar, creio que um enfoque analítico é fundamental; é preciso saber trabalhar com os conceitos e temas de PI, porque o tipo de questão pode induzir o candidato a privilegiar um enfoque descritivo, histórico, quase narrativo, e isso não é o que se pede no Concurso...
Ler os livros da bibliografia indicada é fundamental - mas não todos, como o Maurício já deve ter dito. Muitos são dispensáveis. Alguns, em contraste, são quase obrigatórios. Amado Cervo & Clodoaldo Bueno e Henrique Altemani são dois deles. Outros que são recomendáveis são Robert Gilpin, Flávio Sombra Saraiva, Moniz Bandeira, José Guilhon Albuquerque e Paulo Vizentini.
Os livros são essenciais, mas não suficientes. Manter-se a par da política internacional na atualidade, no dia-a-dia mesmo, é importantíssimo. Considero leituras obrigatórias revistas especializadas (Política Externa, Contexto Internacional, Foreign Affairs...), artigos publicados por Diplomatas (RelNet é referência óbvia) e mídia internacional (The Economist é altamente recomendável). Este tipo de leitura não apenas mantém o candidato atualizado quanto à política internacional, mas também ajuda-lhe a desenvolver o senso crítico e a capacidade de analisar temas internacionais contemporâneos.
Bom, para um primeiro contato, creio ter atingido o objetivo, que era fornecer dicas mais gerais sobre a prova de PI. Evidentemente, as dicas nunca se esgotam em algumas poucas linhas; ademais, cada candidato desenvolve, ao longo de sua preparação, uma rotina e um método de estudos próprios, com o que descobre, por fim, suas próprias dicas.
Uma última sugestão (e me desculpem a obviedade): não esperem descobrir segredos ou truques para passar no CACD. A maior dica que eu posso dar - e nesta insistirei sempre - é: estudem. Muito.
Abraços e até uma próxima oportunidade!
terça-feira, 13 de novembro de 2007
RESENHAS
Faremos uma pequena pausa nos debates sobre o CACD. O Diálogo Diplomático está publicando quatro resenhas de obras relacionadas à diplomacia, elaboradas como exercício da disciplina de redação do IRBr. Eu decidi compartilhar minha resenha e meus colegas Fábio Simão Alves, Gustavo Pereira e D. G. Ducci aceitaram o convite para publicarem as suas. Os temas e obras podem interessar a muitos leitores do blog, espero que apreciem.
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CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. Série Perfis Brasileiros, Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2007.
Maurício Costa
A história do Brasil contada do ponto de vista do Imperador ou a vida do Imperador contada de acordo com a história do Brasil? A biografia de D.Pedro II, escrita por José Murilo de Carvalho, é uma resposta afirmativa a ambas as perguntas. Da abdicação do pai ao ocaso do Império no simbólico baile da Ilha Fiscal, acompanhamos, ao mesmo tempo, o processo histórico e os sentimentos de um homem que confundiu sua vida com a vida política do País.
A obra de José Murilo de Carvalho é um exercício historiográfico de alto grau de dificuldade. O autor elaborou seu trabalho com base nos diários e cartas de D. Pedro II, bem como em uma ampla consulta bibliográfica e em diversas outras fontes primárias. A narrativa é fluida, quase literária, muito embora não lhe escapem a precisão dos fatos e o viés analítico do historiador. O autor é bem sucedido na tarefa de conciliar os processos, os personagens, os sentimentos e as convicções na condução da narrativa.
O medo dos canhões, a coroação e o choro de um menino de cinco anos em 1831 se misturam à necessidade de manutenção da unidade nacional, à instabilidade política e ao processo de consolidação do Brasil independente. Pedro de Alcântara, o imperador criança, seria um dos estadistas mais respeitados do mundo. D.Pedro II seria um homem de amores impulsivos, de amor duradouro pela Condessa de Barral, frustrado por não ter a oportunidade de viver como um cidadão comum.
Ao longo da narrativa, conhecemos o D. Pedro II apaixonado pelas letras e pelas artes, homem culto e de convicções fortes. Esse mesmo D.Pedro II também nos é apresentado como um homem de princípios políticos claros, exasperado com a hipocrisia dos políticos profissionais, absorto pelos problemas do país e apaixonado pelo Brasil. Um D. Pedro II diferente daquele personagem dos livros escolares nos é revelado quando seus amores, suas paixões e seus desejos são narrados de próprio punho em suas cartas e em seu diário pessoal.
A história pessoal tem como pano de fundo os principais fatos históricos de seus quarenta e nove anos de reinado: a maioridade, a consolidação da unidade nacional, as políticas intervencionistas na Bacia do Rio da Prata, a Guerra do Paraguai, as relações com a Inglaterra, a questão religiosa, a questão da abolição, o republicanismo e. as contradições do poder moderador. A voz de Pedro de Alcântara, homem comum e Imperador, com mediação de José Murilo de Carvalho, expressa seus sentimentos e convicções em relação a tais eventos e contribui para esclarecer muitas dúvidas a respeito de interpretações de seus atos como governante do Brasil.
A doença, a decadência de sua capacidade para unir as elites políticas, a queda e o exílio dão ao epílogo da obra de José Murilo de Carvalho, assim como ao epílogo da vida de Pedro de Alcântara, um tom melancólico que parecia prenunciar o caos que se instalaria no Brasil republicano. A morte de D. Pedro II não é o fim de sua história, mas o início da recuperação da imagem de estadista, de político e de maior personalidade brasileira do século XIX, quem sabe a maior de nossa curta história como nação independente.
D. Pedro II, da série Perfis Brasileiros, é uma biografia de altíssima qualidade que merece a atenção dos leitores, tanto pela beleza da história que é contada quanto pelo talento do historiador José Murilo de Carvalho, um de nossos maiores especialistas em história do Império.
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Barboza, Mario Gibson. Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida. Rio de Janeiro: Record, 1992.
Resenha
Fábio Simão Alves
O historiador e escritor escocês Thomas Carlyle disse uma vez que “uma vida bem escrita é quase tão rara como uma vida bem vivida”. Avaliada a partir dessas palavras, “Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida” é, certamente, uma daquelas obras raras, ou melhor, duplamente raras: o livro do ex-chanceler Mario Gibson Barboza é uma vida bem escrita a respeito de uma vida bem vivida.
A obra de Mario Gibson não é, a bem da verdade, uma autobiografia, mas, antes, um livro de impressões, um livro de memórias do tipo incomum: “Na Diplomacia...” é muito mais uma história fatual da política externa do Brasil, durante um período de mais de meio século (1940-1992), do que a história da vida de um homem. Mario Gibson se coloca como o co-adjuvante de um enredo em que a Diplomacia brasileira é a personagem principal.
Mario Gibson Barboza é uma das figuras mais destacadas da Diplomacia brasileira contemporânea. Ingresso no serviço exterior em 1940, galgou ao longo de cinco décadas os postos mais importantes da carreira: ministro-conselheiro nas Nações Unidas; Embaixador em Washington, Londres e Roma; Chefe de Gabinete nas gestões Raul Fernandes, Afonso Arinos e San Tiago Dantas; Secretário-Geral na gestão Magalhães Pinto; e, finalmente, Ministro de Estado das Relações Exteriores no governo Médici. Mais importantes do que sua trajetória pessoal, no entanto, foram as profundas transformações por que passou o Brasil no período que coincide com sua carreira, e que são, na realidade, o fio condutor de seu livro.
Com elegância e sensibilidade, Mario Gibson descreve algumas das figuras mais importantes de nossa Diplomacia: suas páginas trazem ricas histórias de Raul Fernandes (“o homem que viria a ser tão importante em minha vida, que me daria todo seu afeto de pai que nunca foi, que exerceria tão forte fascínio sobre mim e seria determinante na minha carreira diplomática”) e San Tiago Dantas (“depois que o encontrei, tanto sua figura de homem público como sua persona me foram sendo reveladas no que para mim ficou sendo a minha verdade [...]. Como e quando se organizará novamente um ser tão excepcional?”). Não faltam tampouco análises penetrantes das mais variadas personalidades políticas, do Brasil e do mundo, que Mario Gibson conheceu durante sua carreira: Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Emílio Médici, Delfim Netto, Golda Meir, Henry Kissinger, Richard Nixon, Anwar Sadat...
Exibe uma visão abrangente e perspicaz quando analisa os principais momentos da política externa brasileira na segunda metade do século XX. De forma bastante modesta, põe-se no lugar de observador, mesmo nos momentos em que atuou de forma decisiva, para oferecer ao leitor um relato preciso de momentos fundamentais da Diplomacia brasileira, como o lançamento da Operação Pan-Americana, a expulsão do governo cubano da OEA, o lançamento da idéia de Itaipu, a transferência do Itamaraty para Brasília, o lançamento da Diplomacia do Interesse Nacional no governo Médici, as crises com os Estados Unidos nos anos 70, a consolidação da política africana na Diplomacia brasileira. Sua perspectiva de participante de todos esses momentos oferece ao leitor uma nova visão dos fatos, que perdem parte do caráter formal que imprimem os manuais de História Diplomática para, quase que romanceados – sem prescindir, no entanto, de fidedignidade – assumirem uma proximidade que atrai o leitor para dentro dos acontecimentos, tornando-os muito mais interessantes à medida que se revelam mais e mais próximos.
No livro, não faltam passagens que desvendam momentos de bastidores da Diplomacia, sem que o autor, no entanto, se incline para a vulgaridade do gossip, tão ao gosto de muitos (pseudo-)escritores de memórias, inclusive ex-diplomatas... Uma das mais interessantes, reveladora do caráter de Mario Gibson e de seu amor pela Casa, é um diálogo que teve com o Presidente Médici, em 1971, a respeito de críticas que o então super-ministro Delfim Netto tecera à política africana lançada pelo Itamaraty. O Chanceler, ultrajado pelas críticas de Delfim, mandara o Secretário-Geral, Embaixador Jorge de Carvalho e Silva, rebatê-las por meio de nota à imprensa, o que desagradou ao Presidente. Repreendido fortemente por Médici, Gibson assumiu posição de resistência decidida: “Olha, Presidente, vamos fazer um acordo? O senhor fala com o Delfim Netto para não se meter no Itamaraty. Ele se mete em todos os Ministérios, eu não tenho nada a ver com isso. Mas no meu não se mete”. Ao que Médici respondeu, sorrindo, de forma surpreendente para o próprio autor: “Você é um pernambucano de sangue muito quente. É pior do que no Rio Grande!”.
É com clareza, sensibilidade para os fatos e as pessoas e, mesmo, certa informalidade que Mario Gibson tece em sua obra um quadro de impressões nítidas sobre os cinqüenta anos de Diplomacia brasileira dos quais foi co-adjuvante – ora secundário, ora principal, mas sempre um co-adjuvante. “Não pretendi fazer desta narrativa uma autobiografia, nem tampouco um livro de memórias”, escreve-nos Gibson. Não há no livro sua história; o que há ali são, como reconhece o ex-Chanceler, “minhas histórias”. Histórias da Diplomacia, que se confundem com a história da vida de um homem excepcional. A obra revela, talvez, a sina de todo diplomata: suas vidas pessoal e profissional inevitavelmente se confundem, a ponto de ser uma única vida, vida esta cujo “traço todo” está fadado a ser a Diplomacia.
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SARAIVA GUERREIRO, Ramiro. Lembranças de um empregado do Itamaraty. São Paulo: Siciliano, 1992.
Gustavo dos Santos Pereira
A obra Lembranças de um empregado do Itamaraty, do diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores Ramiro Saraiva Guerreiro, ao lado das memórias do embaixador Gibson Barbosa (Na diplomacia, o traço todo da vida), constitui retrato fiel da atuação do Itamaraty na década de 70 e no início dos anos 80, período dos mais significativos para a redefinição da política externa brasileira.
O título da obra, segundo o próprio diplomata, remete a uma expressão comumente usada pelo embaixador Cyro de Freitas-Valle, a quem credita muito do que sabe e a quem considera um mentor intelectual e profissional. Nas próprias palavras de Guerreiro, “não há capacidade de mando se antes não se obedeceu”; para ele, portanto, a expressão “empregado do Itamaraty” reveste-se de um tom de humildade e revela o espírito de aprendizado árduo do qual está imbuída a profissão de diplomata.
Ao longo do texto, damo-nos conta facilmente de que Saraiva Guerreiro tem a preocupação de convidar o leitor a adentrar o universo de suas memórias. É inegável a estratégia de ambientação que o ex-ministro adota para que o leitor se sinta familiarizado com os conceitos que norteavam a diplomacia brasileira na época em foco. Terceiro-mundismo, política externa independente, desenvolvimento, não-alinhamento são conceitos manuseados com habilidade e conhecimento de causa pelo autor de maneira a trazer o leitor ao pensamento do Itamaraty no período do chamado “pragmatismo responsável” em política externa.
Saraiva Guerreiro teve uma brilhante carreira. Serviu em Washington, Paris e Nova Iorque, na missão junto a ONU, e tornou-se conhecido por sua atuação como secretário-geral da casa (de 1974 a 1979) durante o governo Geisel e como ministro das Relações Exteriores do governo Figueiredo (de 1979 a 1985). Testemunhou, nessas altas funções, episódios da política internacional tão marcantes quanto a Guerra das Malvinas ou a formação do Grupo de Contadora, de apoio à pacificação dos países da América Central. É sobre esse período que transcorrem as histórias e relatos da obra, sempre pontilhadas pelo bom-humor que é habitual a Saraiva Guerreiro.
Um dos trunfos de sua estratégia discursiva é evitar que o livro siga um roteiro cronológico. Com efeito, Saraiva Guerreiro nos brinda com suas ricas experiências e as anedotas saborosas sem preocupar-se com qualquer tipo de ordem ou plano. O livro atrai o leitor ao aproximar-se do fluxo de consciência, ao acercar-se quase de um relato leve de quem toma uma caneta à mão e desata a escrever. Ressalte-se, contudo, que se há divisões em Memórias de um empregado do Itamaraty, essas são temáticas, por opção didática expressa do autor.
É interessante notar que o ex-ministro de Estado, entre uma anedota e outra, defende a idéia de que o “pragmatismo responsável” é uma releitura crítica da antiga “política externa independente”, e não significa outra coisa senão uma natural adaptação do Itamaraty aos novos desafios do mundo da détente, sem abandonar suas tradições. Nas entrelinhas do seu discurso, extrai-se o âmago da política externa que ajudou a elaborar: uma opção deliberada por aquilo que hoje se chama de “Sul”, e um certo ressentimento para com um “Norte” incapaz de contribuir para satisfazer as necessidades próprias de um país em desenvolvimento como o Brasil.O livro de Saraiva Guerreiro é conciso, elucidativo e de leitura extremamente agradável e lúdica. Mais do que isso, o livro ganha um interesse especial já que trata de uma época que se constitui como embrião da atual política externa brasileira: Memórias de um empregado do Itamaraty prova como esta é herdeira da política externa do Itamaraty dos anos 70, e como a continuidade tão cara a esse ministério não é apenas um discurso retórico.
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Diplomacia Cultural, de Edgard Telles Ribeiro
D. G. Ducci
O chanceler Celso Amorim tem reiterado que o processo de integração sul-americana não deve ser apenas um projeto de governos e de empresários, mas também dos povos e das civilizações. Não basta que os presidentes e os políticos sejam integracionistas; é preciso, nas palavras do ministro, que o “guarda da esquina” também o seja. Mudanças no pensamento e nas atitudes das populações significam aquisições de traços culturais diferenciados. Amorim, que construiu boa parte de sua carreira preocupado com os temas da diplomacia cultural, sabe muito bem disso.
Outro profundo conhecedor dos meandros da ação diplomática no campo da cultura é o Embaixador Edgard Telles Ribeiro. Assim como Amorim, Telles Ribeiro tem sua carreira ligada à área cultural do Itamaraty. Além de diplomata, é romancista e contista, tendo publicado cerca de uma dezena de livros na última década e meia. Sua obra – estranhamente menos conhecida do grande público do que deveria – já foi publicada em diversos países, como Estados Unidos, Alemanha e Holanda.
Desde o fim da década de 1970, Telles Ribeiro tem trabalhado com temas afeitos às relações culturais do Brasil. Seu livro “Diplomacia Cultural: seu papel na política externa brasileira” foi publicado, em 1989, em uma tradicional edição da Fundação Alexandre de Gusmão, e trazia as reflexões, até aquele momento, do então Conselheiro da carreira diplomática.
Telles Ribeiro escrevia, naquele momento, em um mundo em que a Internet ainda não havia se popularizado para além os meios militares e acadêmicos, e em que o tema da globalização ainda não havia se tornado recorrente na imprensa e nos trabalhos dos intelectuais. O Mercosul não existia, e, no ordenamento jurídico interno, não havia leis de incentivo à cultura nos moldes da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual. Dessa forma, poder-se-ia dar a impressão de que o livro está ultrapassado e fora de contexto. Entretanto, as bases conceituais e estratégicas sobre o tema, ali presentes, sobreviveram ao tempo e ganharam relevância.
Não se trata de obra que aprofunde a discussão sobre o conceito de cultura. A bibliografia utilizada no estudo traz autores ligados não à antropologia, mas à política e às relações internacionais. Em vez da interpretação das culturas de Clifford Geertz, o texto tem como base Charles Frankel, relatórios da UNESCO, Celso Furtado e até T.S.Eliot. Em breves três páginas, Telles Ribeiro admite “tomar de empréstimo à antropologia sua concepção mais básica de cultura”, que seria a “soma dos hábitos, costumes e realizações de um indivíduo, uma comunidade, um povo, ao longo de sua história”. Essa definição simples serve aos propósitos do estudo, a discussão dos parâmetros de desenvolvimento da diplomacia cultural.
O autor reconhece e reforça as duas grandes frentes de ação da diplomacia cultural. Por um lado, pode ser utilizada como um instrumento de aproximação entre os povos, de amenização das desconfianças mútuas e de fomento à cooperação internacional em causas comuns como a luta pela paz e a preservação do meio ambiente. Por outro lado, a consecução de objetivos nacionais de natureza diversa da cultural – prioridades políticas, econômicas e comerciais – pode encontrar nas ações da diplomacia cultural poderoso mediador e aliado.
Além disso, é defendida a tese de que, ao promover seus bens culturais no exterior, os países reafirmam permanentemente suas identidades nacionais. A diplomacia cultural do Brasil, ao trabalhar além das fronteiras do país, seria parte de nossa consolidação interna. Esse duplo efeito teria maior eficácia quanto mais as linhas de ação refletissem a diversificada realidade cultural brasileira. O Ministério das Relações Exteriores possuiria, pois, papel singular também em áreas da política cultural interna do país.
Passadas quase duas décadas da publicação de “Diplomacia Cultural”, a escassez bibliográfica acusada no prefácio de Sergio Rouanet permanece. Fica o convite para que Telles Ribeiro e outros diplomatas e acadêmicos atualizem o tema, incorporando novas abordagens das relações internacionais – como, por exemplo, o modelo de “poder estrutural” de Susan Strange – a suas contribuições. Em tempos de diplomacia dos povos, nada parece mais justificável.
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CARVALHO, José Murilo de. D. Pedro II. Série Perfis Brasileiros, Rio de Janeiro: Cia das Letras, 2007.
Maurício Costa
A história do Brasil contada do ponto de vista do Imperador ou a vida do Imperador contada de acordo com a história do Brasil? A biografia de D.Pedro II, escrita por José Murilo de Carvalho, é uma resposta afirmativa a ambas as perguntas. Da abdicação do pai ao ocaso do Império no simbólico baile da Ilha Fiscal, acompanhamos, ao mesmo tempo, o processo histórico e os sentimentos de um homem que confundiu sua vida com a vida política do País.
A obra de José Murilo de Carvalho é um exercício historiográfico de alto grau de dificuldade. O autor elaborou seu trabalho com base nos diários e cartas de D. Pedro II, bem como em uma ampla consulta bibliográfica e em diversas outras fontes primárias. A narrativa é fluida, quase literária, muito embora não lhe escapem a precisão dos fatos e o viés analítico do historiador. O autor é bem sucedido na tarefa de conciliar os processos, os personagens, os sentimentos e as convicções na condução da narrativa.
O medo dos canhões, a coroação e o choro de um menino de cinco anos em 1831 se misturam à necessidade de manutenção da unidade nacional, à instabilidade política e ao processo de consolidação do Brasil independente. Pedro de Alcântara, o imperador criança, seria um dos estadistas mais respeitados do mundo. D.Pedro II seria um homem de amores impulsivos, de amor duradouro pela Condessa de Barral, frustrado por não ter a oportunidade de viver como um cidadão comum.
Ao longo da narrativa, conhecemos o D. Pedro II apaixonado pelas letras e pelas artes, homem culto e de convicções fortes. Esse mesmo D.Pedro II também nos é apresentado como um homem de princípios políticos claros, exasperado com a hipocrisia dos políticos profissionais, absorto pelos problemas do país e apaixonado pelo Brasil. Um D. Pedro II diferente daquele personagem dos livros escolares nos é revelado quando seus amores, suas paixões e seus desejos são narrados de próprio punho em suas cartas e em seu diário pessoal.
A história pessoal tem como pano de fundo os principais fatos históricos de seus quarenta e nove anos de reinado: a maioridade, a consolidação da unidade nacional, as políticas intervencionistas na Bacia do Rio da Prata, a Guerra do Paraguai, as relações com a Inglaterra, a questão religiosa, a questão da abolição, o republicanismo e. as contradições do poder moderador. A voz de Pedro de Alcântara, homem comum e Imperador, com mediação de José Murilo de Carvalho, expressa seus sentimentos e convicções em relação a tais eventos e contribui para esclarecer muitas dúvidas a respeito de interpretações de seus atos como governante do Brasil.
A doença, a decadência de sua capacidade para unir as elites políticas, a queda e o exílio dão ao epílogo da obra de José Murilo de Carvalho, assim como ao epílogo da vida de Pedro de Alcântara, um tom melancólico que parecia prenunciar o caos que se instalaria no Brasil republicano. A morte de D. Pedro II não é o fim de sua história, mas o início da recuperação da imagem de estadista, de político e de maior personalidade brasileira do século XIX, quem sabe a maior de nossa curta história como nação independente.
D. Pedro II, da série Perfis Brasileiros, é uma biografia de altíssima qualidade que merece a atenção dos leitores, tanto pela beleza da história que é contada quanto pelo talento do historiador José Murilo de Carvalho, um de nossos maiores especialistas em história do Império.
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Barboza, Mario Gibson. Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida. Rio de Janeiro: Record, 1992.
Resenha
Fábio Simão Alves
O historiador e escritor escocês Thomas Carlyle disse uma vez que “uma vida bem escrita é quase tão rara como uma vida bem vivida”. Avaliada a partir dessas palavras, “Na Diplomacia, o Traço Todo da Vida” é, certamente, uma daquelas obras raras, ou melhor, duplamente raras: o livro do ex-chanceler Mario Gibson Barboza é uma vida bem escrita a respeito de uma vida bem vivida.
A obra de Mario Gibson não é, a bem da verdade, uma autobiografia, mas, antes, um livro de impressões, um livro de memórias do tipo incomum: “Na Diplomacia...” é muito mais uma história fatual da política externa do Brasil, durante um período de mais de meio século (1940-1992), do que a história da vida de um homem. Mario Gibson se coloca como o co-adjuvante de um enredo em que a Diplomacia brasileira é a personagem principal.
Mario Gibson Barboza é uma das figuras mais destacadas da Diplomacia brasileira contemporânea. Ingresso no serviço exterior em 1940, galgou ao longo de cinco décadas os postos mais importantes da carreira: ministro-conselheiro nas Nações Unidas; Embaixador em Washington, Londres e Roma; Chefe de Gabinete nas gestões Raul Fernandes, Afonso Arinos e San Tiago Dantas; Secretário-Geral na gestão Magalhães Pinto; e, finalmente, Ministro de Estado das Relações Exteriores no governo Médici. Mais importantes do que sua trajetória pessoal, no entanto, foram as profundas transformações por que passou o Brasil no período que coincide com sua carreira, e que são, na realidade, o fio condutor de seu livro.
Com elegância e sensibilidade, Mario Gibson descreve algumas das figuras mais importantes de nossa Diplomacia: suas páginas trazem ricas histórias de Raul Fernandes (“o homem que viria a ser tão importante em minha vida, que me daria todo seu afeto de pai que nunca foi, que exerceria tão forte fascínio sobre mim e seria determinante na minha carreira diplomática”) e San Tiago Dantas (“depois que o encontrei, tanto sua figura de homem público como sua persona me foram sendo reveladas no que para mim ficou sendo a minha verdade [...]. Como e quando se organizará novamente um ser tão excepcional?”). Não faltam tampouco análises penetrantes das mais variadas personalidades políticas, do Brasil e do mundo, que Mario Gibson conheceu durante sua carreira: Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros, Emílio Médici, Delfim Netto, Golda Meir, Henry Kissinger, Richard Nixon, Anwar Sadat...
Exibe uma visão abrangente e perspicaz quando analisa os principais momentos da política externa brasileira na segunda metade do século XX. De forma bastante modesta, põe-se no lugar de observador, mesmo nos momentos em que atuou de forma decisiva, para oferecer ao leitor um relato preciso de momentos fundamentais da Diplomacia brasileira, como o lançamento da Operação Pan-Americana, a expulsão do governo cubano da OEA, o lançamento da idéia de Itaipu, a transferência do Itamaraty para Brasília, o lançamento da Diplomacia do Interesse Nacional no governo Médici, as crises com os Estados Unidos nos anos 70, a consolidação da política africana na Diplomacia brasileira. Sua perspectiva de participante de todos esses momentos oferece ao leitor uma nova visão dos fatos, que perdem parte do caráter formal que imprimem os manuais de História Diplomática para, quase que romanceados – sem prescindir, no entanto, de fidedignidade – assumirem uma proximidade que atrai o leitor para dentro dos acontecimentos, tornando-os muito mais interessantes à medida que se revelam mais e mais próximos.
No livro, não faltam passagens que desvendam momentos de bastidores da Diplomacia, sem que o autor, no entanto, se incline para a vulgaridade do gossip, tão ao gosto de muitos (pseudo-)escritores de memórias, inclusive ex-diplomatas... Uma das mais interessantes, reveladora do caráter de Mario Gibson e de seu amor pela Casa, é um diálogo que teve com o Presidente Médici, em 1971, a respeito de críticas que o então super-ministro Delfim Netto tecera à política africana lançada pelo Itamaraty. O Chanceler, ultrajado pelas críticas de Delfim, mandara o Secretário-Geral, Embaixador Jorge de Carvalho e Silva, rebatê-las por meio de nota à imprensa, o que desagradou ao Presidente. Repreendido fortemente por Médici, Gibson assumiu posição de resistência decidida: “Olha, Presidente, vamos fazer um acordo? O senhor fala com o Delfim Netto para não se meter no Itamaraty. Ele se mete em todos os Ministérios, eu não tenho nada a ver com isso. Mas no meu não se mete”. Ao que Médici respondeu, sorrindo, de forma surpreendente para o próprio autor: “Você é um pernambucano de sangue muito quente. É pior do que no Rio Grande!”.
É com clareza, sensibilidade para os fatos e as pessoas e, mesmo, certa informalidade que Mario Gibson tece em sua obra um quadro de impressões nítidas sobre os cinqüenta anos de Diplomacia brasileira dos quais foi co-adjuvante – ora secundário, ora principal, mas sempre um co-adjuvante. “Não pretendi fazer desta narrativa uma autobiografia, nem tampouco um livro de memórias”, escreve-nos Gibson. Não há no livro sua história; o que há ali são, como reconhece o ex-Chanceler, “minhas histórias”. Histórias da Diplomacia, que se confundem com a história da vida de um homem excepcional. A obra revela, talvez, a sina de todo diplomata: suas vidas pessoal e profissional inevitavelmente se confundem, a ponto de ser uma única vida, vida esta cujo “traço todo” está fadado a ser a Diplomacia.
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SARAIVA GUERREIRO, Ramiro. Lembranças de um empregado do Itamaraty. São Paulo: Siciliano, 1992.
Gustavo dos Santos Pereira
A obra Lembranças de um empregado do Itamaraty, do diplomata e ex-ministro das Relações Exteriores Ramiro Saraiva Guerreiro, ao lado das memórias do embaixador Gibson Barbosa (Na diplomacia, o traço todo da vida), constitui retrato fiel da atuação do Itamaraty na década de 70 e no início dos anos 80, período dos mais significativos para a redefinição da política externa brasileira.
O título da obra, segundo o próprio diplomata, remete a uma expressão comumente usada pelo embaixador Cyro de Freitas-Valle, a quem credita muito do que sabe e a quem considera um mentor intelectual e profissional. Nas próprias palavras de Guerreiro, “não há capacidade de mando se antes não se obedeceu”; para ele, portanto, a expressão “empregado do Itamaraty” reveste-se de um tom de humildade e revela o espírito de aprendizado árduo do qual está imbuída a profissão de diplomata.
Ao longo do texto, damo-nos conta facilmente de que Saraiva Guerreiro tem a preocupação de convidar o leitor a adentrar o universo de suas memórias. É inegável a estratégia de ambientação que o ex-ministro adota para que o leitor se sinta familiarizado com os conceitos que norteavam a diplomacia brasileira na época em foco. Terceiro-mundismo, política externa independente, desenvolvimento, não-alinhamento são conceitos manuseados com habilidade e conhecimento de causa pelo autor de maneira a trazer o leitor ao pensamento do Itamaraty no período do chamado “pragmatismo responsável” em política externa.
Saraiva Guerreiro teve uma brilhante carreira. Serviu em Washington, Paris e Nova Iorque, na missão junto a ONU, e tornou-se conhecido por sua atuação como secretário-geral da casa (de 1974 a 1979) durante o governo Geisel e como ministro das Relações Exteriores do governo Figueiredo (de 1979 a 1985). Testemunhou, nessas altas funções, episódios da política internacional tão marcantes quanto a Guerra das Malvinas ou a formação do Grupo de Contadora, de apoio à pacificação dos países da América Central. É sobre esse período que transcorrem as histórias e relatos da obra, sempre pontilhadas pelo bom-humor que é habitual a Saraiva Guerreiro.
Um dos trunfos de sua estratégia discursiva é evitar que o livro siga um roteiro cronológico. Com efeito, Saraiva Guerreiro nos brinda com suas ricas experiências e as anedotas saborosas sem preocupar-se com qualquer tipo de ordem ou plano. O livro atrai o leitor ao aproximar-se do fluxo de consciência, ao acercar-se quase de um relato leve de quem toma uma caneta à mão e desata a escrever. Ressalte-se, contudo, que se há divisões em Memórias de um empregado do Itamaraty, essas são temáticas, por opção didática expressa do autor.
É interessante notar que o ex-ministro de Estado, entre uma anedota e outra, defende a idéia de que o “pragmatismo responsável” é uma releitura crítica da antiga “política externa independente”, e não significa outra coisa senão uma natural adaptação do Itamaraty aos novos desafios do mundo da détente, sem abandonar suas tradições. Nas entrelinhas do seu discurso, extrai-se o âmago da política externa que ajudou a elaborar: uma opção deliberada por aquilo que hoje se chama de “Sul”, e um certo ressentimento para com um “Norte” incapaz de contribuir para satisfazer as necessidades próprias de um país em desenvolvimento como o Brasil.O livro de Saraiva Guerreiro é conciso, elucidativo e de leitura extremamente agradável e lúdica. Mais do que isso, o livro ganha um interesse especial já que trata de uma época que se constitui como embrião da atual política externa brasileira: Memórias de um empregado do Itamaraty prova como esta é herdeira da política externa do Itamaraty dos anos 70, e como a continuidade tão cara a esse ministério não é apenas um discurso retórico.
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Diplomacia Cultural, de Edgard Telles Ribeiro
D. G. Ducci
O chanceler Celso Amorim tem reiterado que o processo de integração sul-americana não deve ser apenas um projeto de governos e de empresários, mas também dos povos e das civilizações. Não basta que os presidentes e os políticos sejam integracionistas; é preciso, nas palavras do ministro, que o “guarda da esquina” também o seja. Mudanças no pensamento e nas atitudes das populações significam aquisições de traços culturais diferenciados. Amorim, que construiu boa parte de sua carreira preocupado com os temas da diplomacia cultural, sabe muito bem disso.
Outro profundo conhecedor dos meandros da ação diplomática no campo da cultura é o Embaixador Edgard Telles Ribeiro. Assim como Amorim, Telles Ribeiro tem sua carreira ligada à área cultural do Itamaraty. Além de diplomata, é romancista e contista, tendo publicado cerca de uma dezena de livros na última década e meia. Sua obra – estranhamente menos conhecida do grande público do que deveria – já foi publicada em diversos países, como Estados Unidos, Alemanha e Holanda.
Desde o fim da década de 1970, Telles Ribeiro tem trabalhado com temas afeitos às relações culturais do Brasil. Seu livro “Diplomacia Cultural: seu papel na política externa brasileira” foi publicado, em 1989, em uma tradicional edição da Fundação Alexandre de Gusmão, e trazia as reflexões, até aquele momento, do então Conselheiro da carreira diplomática.
Telles Ribeiro escrevia, naquele momento, em um mundo em que a Internet ainda não havia se popularizado para além os meios militares e acadêmicos, e em que o tema da globalização ainda não havia se tornado recorrente na imprensa e nos trabalhos dos intelectuais. O Mercosul não existia, e, no ordenamento jurídico interno, não havia leis de incentivo à cultura nos moldes da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual. Dessa forma, poder-se-ia dar a impressão de que o livro está ultrapassado e fora de contexto. Entretanto, as bases conceituais e estratégicas sobre o tema, ali presentes, sobreviveram ao tempo e ganharam relevância.
Não se trata de obra que aprofunde a discussão sobre o conceito de cultura. A bibliografia utilizada no estudo traz autores ligados não à antropologia, mas à política e às relações internacionais. Em vez da interpretação das culturas de Clifford Geertz, o texto tem como base Charles Frankel, relatórios da UNESCO, Celso Furtado e até T.S.Eliot. Em breves três páginas, Telles Ribeiro admite “tomar de empréstimo à antropologia sua concepção mais básica de cultura”, que seria a “soma dos hábitos, costumes e realizações de um indivíduo, uma comunidade, um povo, ao longo de sua história”. Essa definição simples serve aos propósitos do estudo, a discussão dos parâmetros de desenvolvimento da diplomacia cultural.
O autor reconhece e reforça as duas grandes frentes de ação da diplomacia cultural. Por um lado, pode ser utilizada como um instrumento de aproximação entre os povos, de amenização das desconfianças mútuas e de fomento à cooperação internacional em causas comuns como a luta pela paz e a preservação do meio ambiente. Por outro lado, a consecução de objetivos nacionais de natureza diversa da cultural – prioridades políticas, econômicas e comerciais – pode encontrar nas ações da diplomacia cultural poderoso mediador e aliado.
Além disso, é defendida a tese de que, ao promover seus bens culturais no exterior, os países reafirmam permanentemente suas identidades nacionais. A diplomacia cultural do Brasil, ao trabalhar além das fronteiras do país, seria parte de nossa consolidação interna. Esse duplo efeito teria maior eficácia quanto mais as linhas de ação refletissem a diversificada realidade cultural brasileira. O Ministério das Relações Exteriores possuiria, pois, papel singular também em áreas da política cultural interna do país.
Passadas quase duas décadas da publicação de “Diplomacia Cultural”, a escassez bibliográfica acusada no prefácio de Sergio Rouanet permanece. Fica o convite para que Telles Ribeiro e outros diplomatas e acadêmicos atualizem o tema, incorporando novas abordagens das relações internacionais – como, por exemplo, o modelo de “poder estrutural” de Susan Strange – a suas contribuições. Em tempos de diplomacia dos povos, nada parece mais justificável.
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