Caros,Dando prosseguimento à série de textos sobre política externa de países selecionados, publico hoje um estudo aprofundado sobre a política externa mexicana. Chamar este artigo, por sua densidade e complexidade, de um artigo de "impressões" seria totalmente inadequado...Tenho certeza de que o estudo a seguir será de grande valor para todos nós que nos interessamos por Diplomacia e Polítca Internacional e que raramente contamos com um trabalho tão bem-elaborado sobre um país ainda pouco estudado nas academias de relações internacionais do Brasil.O texto é de autoria de um pesquisador que me brinda com sua amizade, Bruno Boti Bernardi, a quem agradeço pela gentileza de colaborar com o blog.Bruno Boti Bernardi (bboti@uol.com.br) é bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (USP), mestrando no Departamento de Ciência Política da USP e bolsista FAPESP. Estuda o processo de transição democrática no México e a política externa daquele país. IntroduçãoA política externa mexicana foi predominantemente legalista e defensiva até a década de 1970. O México possuía uma economia fechada, cujo modelo de desenvolvimento seguia a lógica da substituição de importações – o que não fomentava a criação de vínculos econômicos e comerciais com atores externos –, e um sistema político centralizado, no qual a condução da política externa estava restrita à presidência e à Secretaria de Relações Exteriores (SRE) (Covarrubias, 2003). De outro lado, o PRI (Partido Revolucionário Institucional) afirmava sua origem revolucionária e postura progressista cultivando uma tradição diplomática de defesa intransigente da doutrina de soberania interna e não-intervenção, que buscava ainda sublinhar a independência da política externa mexicana frente aos Estados Unidos. Essas posturas só podem ser compreendidas tendo em vista a importância da história revolucionária mexicana e os inúmeros desafios colocados à soberania e integridade territorial do país desde o século XIX, sobretudo por parte dos Estados Unidos.
Antes de 1970 os governos mexicanos estavam interessados prioritariamente com o desenvolvimento econômico e a estabilidade política do país – o país não possuía reais interesses econômicos, políticos ou estratégicos externos (Chabat, 1996). Além disso, num sistema internacional bipolar altamente polarizado, como quando do início da Guerra Fria, era extremamente arriscado se envolver na política internacional, dada a proximidade e dependência dos Estados Unidos. Desse modo, um papel ativo no sistema internacional não era uma prioridade, mas isso não significou que o México tenha se isolado na cena internacional ou que não tenha tido uma política externa. A despeito de não possuir interesses externos significativos, nem capacidade de atuar ativamente na política internacional, o México defendeu uma política externa própria no sistema interamericano. A OEA (Organização dos Estados Americanos) fornecia espaço para afirmar um discurso de independência e autonomia frente aos Estados Unidos (Covarrubias, 2003), o qual, ainda que meramente restrito ao plano das declarações diplomáticas, mobilizava o discurso dos princípios da política externa mexicana
[1], que frisava a natureza revolucionária e progressista da política externa priísta.
Desse modo, ainda que o sistema bipolar e a dependência dos Estados Unidos restringissem muito a margem de manobra da política externa mexicana, o país encontrou na esfera regional a oportunidade para sublinhar a sua independência frente ao vizinho do norte. O México conseguia divergir, no plano diplomático, dos Estados Unidos ao invocar, na OEA, de forma reativa e defensiva, o direito internacional. A defesa do princípio de não-intervenção buscava proteger o México de interferências excessivas e diretas dos Estados Unidos e frisava o caráter independente e autônomo da política externa mexicana, em consonância com a natureza “revolucionária” do regime (idem).
Assim, usando a tradição diplomática de aplicação dos princípios de não-intervenção, autodeterminação e soberania, o governo mexicano, em oposição à postura dos demais membros da OEA, condenou as invasões da Guatemala (1954) e República Dominicana (1965), rejeitou a imposição de sanções contra Cuba e não rompeu relações diplomáticas com Havana – dessa forma, o México mantinha sua posição anti-intervencionista, mas sem se opor aos Estados Unidos nas questões que os norte-americanos consideravam como fundamentais, como o combate ao comunismo
[2]. O país também se destacou nos esforços pelo desarmamento no âmbito da ONU e, regionalmente, apoiando o Tratado de Proscrição de Armas Nucleares na América Latina e Caribe, de 1967 (Tratado de Tlatelolco).
De posse dessa breve introdução, podemos passar mais propriamente para o objetivo desse texto, de analisar brevemente a política externa mexicana no período entre 1970 e 2006, que corresponde ao mandato de seis presidentes (Echeverría, Portillo, De la Madrid, Salinas de Gortari, Zedillo e Fox). Meu argumento mais geral é o de que foram dois os grandes momentos de reorientação da política externa mexicana nos últimos quarenta anos: o primeiro remete à década de 1970, e inaugura um período de forte ativismo internacional, correspondente ao perfil de uma potência média, enquanto o segundo pode ser pontuado a partir do ano de 1982, quando a crise da dívida externa forçou o país a liberalizar sua economia
[3]. A partir de então o México passou a se aproximar cada vez mais dos Estados Unidos, até culminar no sexenio de Carlos Salinas de Gortari com a implantação do NAFTA. Nesse sentido, argumento que o governo Fox e o final do processo de transição democrática representaram mais continuidades do que mudanças com essa política externa iniciada a partir da década de 1980. Mudanças importantes ocorreram sim no governo Fox, mas argumento que elas se restringiram à aceitação definitiva da internacionalização dos direitos humanos e da promoção democrática.
O Perfil de Potência Média (1970-1982)
O sexênio de Luis Echeverría (1970-1976) rompeu com o tipo de política externa mais defensiva e de atividade global moderada que marcara o período posterior à Segunda Guerra, e o México passou a exibir um ativismo internacional e ambições de liderança até então desconhecidos na história do país (Fernández de Castro, 1994). Esse novo padrão de ativismo internacional respondia a circunstâncias domésticas, mas só foi possível também devido a um sistema internacional muito mais permissivo do que aquele do começo da Guerra Fria (Covarrubias, 2003). Frente aos sinais mais claros de esgotamento do modelo econômico de substituição de importações, e diante de uma crise de legitimidade política do regime, decorrente do massacre de estudantes em 1968
[4], pelo exército, na Cidade do México, Echeverría recorreu ao plano internacional para tentar aplacar as crises econômica e política internas (Flores, 2005).
No âmbito político, era necessário restaurar a imagem progressista e democrática do país e melhorar as relações com os grupos de esquerda que haviam sofrido, junto com os estudantes, do confronto com o exército. Nesse sentido, uma política externa ativa que se aproximava do Chile de Allende e de Cuba, e que ainda defendia o movimento terceiro-mundista foi oferecida em lugar da abertura democrática do regime, apaziguando os setores de esquerda e distraindo a atenção do público dos problemas domésticos. Echeverría aumentou ainda de forma ampla o número de países com os quais o México tinha relações diplomáticas e econômicas, encorajando ainda esforços que buscavam a unidade econômica latino-americana, como no caso do Sistema Econômico Latino-Americano (SELA). Entretanto, mais importante ainda que tais iniciativas era a proposta de uma Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados, que seria uma contrapartida à Declaração Universal dos Direitos do Homem. Tal Carta propunha uma nova ordem econômica internacional, que baseada na equidade, igualdade soberana, interdependência e cooperação reduziria as desigualdades do sistema internacional.
Já no âmbito econômico, o “relacionamento especial” que se acreditava manter com os Estados Unidos chegou ao fim em 1971, quando o governo norte-americano impôs uma taxa adicional de 10% em todas as suas importações e se recusou a isentar produtos mexicanos. Isso apenas expôs ainda mais as já grandes dificuldades econômicas do país, cujo modelo de substituição de importações, em forte crise, precisava de novas fontes de financiamento para dar continuidade à produção de bens de capital. A nova atitude do governo pretendia, então, diversificar a dependência do país, implementando uma política externa de diversificação das relações internacionais mexicanas. Novos mercados eram buscados e estratégias de promoção de exportações foram desenvolvidas, enquanto aumentava a participação do governo na produção e regulação da atividade econômica.
Todavia, a política de diversificação da dependência não produziu os resultados esperados, e no final do governo o país vivia uma severa crise econômica. A dívida externa havia crescido, o peso mexicano tinha se desvalorizado, ocorria fuga de capitais, a balança de pagamentos tinha se deteriorado, e o investimento estrangeiro havia encolhido devido aos tons esquerdistas da política externa. Também haviam fracassado as ambições de construir uma nova ordem econômica internacional, bem como as aspirações individuais do presidente de se tornar secretário-geral da ONU e de receber o prêmio Nobel da Paz.
Frente à crise econômica, o governo seguinte de López Portillo teve de aderir a um programa de austeridade econômica do FMI, o que implicou num primeiro momento um recuo do México da cena internacional. Entretanto, o governo Portillo (1976-1982) logo daria continuidade à política externa ativa do governo anterior voltada à diminuição e combate das desigualdades internacionais nos fóruns multilaterais. A descoberta de reservas petrolíferas no país e a alta dos preços do petróleo no final dos anos 1970 permitiu ao México manter um elevado grau de protagonismo na esfera internacional, sobretudo no entorno regional.
No início de seu governo, Portillo se beneficiou da postura mais tolerante e permissiva do presidente norte-americano Jimmy Carter para a região. Dentro desse ambiente conciliatório fomentado por Carter, Portillo buscou estender a influência do México na América Central. O rompimento aberto e hostil de relações diplomáticas com o regime de Somoza na Nicarágua e o subseqüente apoio aos sandinistas e depois, já em El Salvador, à FLMN se deram num contexto de ambigüidade da política externa norte-americana. Ademais, Portillo tinha também a riqueza do petróleo que dava suporte material ao seu posicionamento na América Central face às críticas dos Estados Unidos que se avolumavam – Portillo podia capitalizar a necessidade norte-americana das reservas de petróleo mexicano tanto como uma moeda de barganha na política para a América Central como um meio de aumentar os níveis de empréstimos internacionais.
Todavia, a má administração dos fundos de petróleo e o mau cálculo das rendas futuras do negócio, juntos de um endividamento maciço com fontes públicas e privadas de crédito dos Estados Unidos, em grau ainda maior do que o dos anos do governo Echeverría, e a repolarização ideológica da região com a ascensão de Reagan contribuíram para que o México abandonasse seu papel de liderança na crise da América Central e seu ativismo determinado na política externa como um todo. A despeito do interesse continuado na região, os problemas de dependência econômica e a necessidade de reestruturar a economia forçaram o México a assumir uma postura mais alinhada com os Estados Unidos, o que significou o fim do perfil de uma política externa de potência média.
O principal empreendimento de Portillo foi encorajar, portanto, a mudança política na Nicarágua e em El Salvador, num momento em que a luta de guerrilhas se alastrava pela América Central no final da década de 1970. O governo mexicano apoiou a revolução sandinista na Nicarágua e em menor extensão o movimento guerrilheiro em El Salvador.
É importante também ressaltar que foi durante o governo Portillo que o México participou pela segunda vez do Conselho de Segurança da ONU, em 1981 – antes disso o país havia sido eleito em 1946. Todavia, como lembra Fernández de Castro, a honra terminou com a precaução tradicional de não mais aceitar semelhante participação, por ser ela fonte de possíveis enfrentamentos desnecessários com os Estados Unidos. Somente no governo Fox o México voltaria a ocupar um assento de membro não-permamente novamente no Conselho de Segurança, o que trouxe tensão não só para a relação bilateral com os Estados Unidos devido à posição mexicana frente à guerra do Iraque, já que domesticamente alguns grupos novamente opunham-se à tal participação no Conselho, seja porque acreditavam que isso implicaria ter de fornecer tropas para missões de paz, seja porque argumentavam que o México se indispunha de forma desnecessária com os Estados Unidos, o que poderia resultar em sanções econômicas do vizinho.
Liberalização econômica e aproximação com os Estados Unidos (1982-2000)
Na década de 1980, a elite governante do México tomou decisões no que remete ao modelo de desenvolvimento econômico e de inserção internacional do país que tiveram conseqüências duradouras e marcantes sobre a política externa mexicana (González, 2001: 619). À opção inicial pela liberalização econômica e abertura ao mercado internacional, implementada lentamente num primeiro momento no governo De la Madrid (1982-1988) que pôs em marcha a reforma econômico-estrutural, seguiu-se a institucionalização de uma associação econômica formal com os Estados Unidos, negociada e implementada no governo Salinas (1988-1994) dentro dos marcos do NAFTA. Essas tendências foram mantidas e aprofundadas pelos governos sequentes, de Ernesto Zedillo (1994-2000) e Vicente Fox (2000-2006), do PAN (Partido Ação Nacional).
Forçado pela grave crise da dívida externa, o governo De la Madrid iniciou um processo de liberalização econômica. Em um período de 12 anos, de 1982 a 1994, o México radicalmente alterou sua política econômica externa, adotando uma estratégia marcada por reformas neoliberais e pela aproximação com os Estados Unidos que culminou na implementação do NAFTA.
Em 1982, o México estava imerso numa profunda crise econômica, a mais forte pela qual o país passara desde a década de 1930, causada, entre outros fatores, por uma recessão global, pela fuga maciça de capital, por uma dívida externa sem precedentes, por uma balança de pagamentos deficitária, recorde de desemprego e inflação galopante. A dívida externa do México tinha aumentado de US$ 4,2 bilhões em 1970 para US$ 30 bilhões em 1977 e alcançava US$ 63,7 bilhões em 1981. Durante o verão de 1982 a situação se agravou ainda mais - com a queda do preço do petróleo as receitas da venda de tal produto caíram 50% e a dívida chegou a US$ 84 bilhões (Gochman, 1998).
Depois que o governo mexicano anunciou em 1982 que não podia cumprir seus compromissos de dívida, que estavam referidos sobretudo com bancos norte-americanos, os Estados Unidos e o FMI apoiaram relutantemente o governo de De la Madrid na condição de que ele iniciasse um programa de recuperação que requeria, entre outras medidas, liberalização econômica e cortes nas despesas públicas, aceitando os planos Baker (1985) e Brady (1990) que implicavam adoção de medidas neoliberais.
O governo De la Madrid implementou medidas de liberalização comercial como parte desse programa de estabilização econômica, reduzindo tarifas de importação e eliminando algumas barreiras não-tarifárias com vistas a facilitar importações, na tentativa de controlar a inflação que começava a fugir do controle. Assim, dentre os esforços que se voltavam ao ajuste macroeconômico se inseria o processo de liberalização comercial unilateral do México e a entrada do país no GATT em 1986.
O esgotamento do modelo de desenvolvimento econômico mexicano teve, portanto, impacto profundo sobre a política externa mexicana, que não ficou restrito às mudanças implantadas por De la Madrid – no governo Salinas assiste-se ao aprofundamento delas e à introdução de novas mudanças. Como bem lembra Meyer, o Presidente Salinas com a finalidade de reanimar a economia e de legitimar o regime do PRI, bem como seu próprio governo – abalados pelo escândalo de suspeitas de fraude eleitoral na eleição de 1988 que levou Salinas ao poder – decidiu realizar uma mudança substantiva na orientação da política exterior do México. A crise do modelo econômico protecionista e o grave problema da dívida externa levaram o governo mexicano a abandonar a estratégia que buscava a manutenção de um âmbito de autonomia relativa frente aos Estados Unidos em favor de uma política externa de integração do sistema produtivo mexicano com os Estados Unidos (Meyer, 2006: 450-453).
Mas se no âmbito econômico a realidade mexicana era a de uma intensa e cada vez mais profunda abertura econômica doméstica, no plano político o ritmo da democratização era bastante lento e gradual, e esse descompasso interno entre o ritmo da liberalização econômica e o da liberalização política gerou impactos substantivos sob a política externa mexicana, criando contradições na forma como aspectos econômicos e políticos eram tratados no âmbito das relações internacionais do país – surgiu uma política multilateral ambivalente, marcada, de um lado, por um compromisso ativo com negociações sobre assuntos econômicos e questões tradicionais de segurança, como desarmamento, enquanto que, de outro lado, existia uma posição mais defensiva e de baixo perfil relativa à promoção da democracia, direitos humanos e aos novos temas da agenda de segurança (González, 2001; 2005).
O desenrolar em velocidades distintas dos processos de liberalização econômica e política gerou a convivência simultânea a partir de meados da década de 1980 de uma política econômica exterior nova, quando comparada com a dos governos anteriores, junto de uma política externa tradicional – a visão estratégica do pragmatismo econômico convivia lado a lado com a do nacionalismo revolucionário (González, 2001, 2005), causando uma contradição na forma de tratamento dos aspectos políticos e econômicos da política externa.
Houve um reconhecimento da globalização econômica, e da necessidade de se promover uma política de abertura aos mercados e fluxos de capital internacionais, mas se manteve uma resistência aos novos condicionantes políticos e sociais da globalização, como o surgimento de redes transnacionais de atores não-governamentais e o fortalecimento de mecanismos de promoção internacional da democracia e dos direitos humanos (idem). Ainda que se tenha assistido nos governos do PRI de De la Madrid, Salinas e Zedillo a uma política externa em acordo com os princípios de abertura econômica neoliberal, o mesmo não ocorria em semelhante grau no âmbito político
[5]. Vários autores lembram que se esperava alterar o modelo de desenvolvimento e o sistema econômico sem que isso afetasse a estrutura política do país (Meyer, 1996; Velasco, 1999; Rangel, 2004).
A liberalização econômica teve um impacto indiscutível sob as posturas internacionais do México; a política externa do país antes ideologicamente orientada e centrada no político transitou para o plano econômico, abandonando o discurso e a ideologia do nacionalismo revolucionário em favor da aceitação dos princípios do livre-comércio e da cooperação institucionalizada com os Estados Unidos. Disso resultou uma ativa política econômica multilateral e uma maior aproximação com os países desenvolvidos, que culminaram no ingresso do México na OCDE, em 1994. Todavia, não se verificou esse mesmo grau de mudanças e transformações da política externa no que dizia respeito não só à promoção da democracia e direitos humanos, mas também no que se referia à institucionalização de novas formas de cooperação em matéria de segurança, como as operações para manutenção da paz e casos de intervenção humanitária
[6], a tal ponto de o país ter se oposto à ampliação multidimensional do conceito de segurança – que passou a abarcar temas políticos, sociais, econômicos e ambientais – em favor de uma noção mais restrita do conceito.
Como destaca González (2001), o ceticismo e a oposição do México com relação ao emprego de instituições multilaterais com propósitos políticos constituíam uma forma que o país encontrou no período do pós-Guerra Fria para evitar uma maior vigilância externa do processo de transição política doméstica. Entretanto, para controlar as crescentes críticas externas, para manter a boa imagem internacional do país e, além disso, para lidar com um contexto de maior diversidade e oposição políticas domésticas, o governo Zedillo, e mesmo antes dele, o governo Salinas, em menor grau, tiveram de relutantemente começar a aceitar as questões da democracia e direitos humanos na agenda de política externa do país.
Deste modo, é preciso lembrar que mesmo nessas duas temáticas, sobre as quais o discurso oficial do governo Fox diz ter iniciado uma política externa totalmente inédita, a mudança não é, portanto, uma novidade totalmente trazida pela eleição de julho de 2000, o que também não invalida o fato de ter ocorrido uma importante mudança qualitativa na maneira de abordar essas questões, já que pela primeira vez a democracia e os direitos humanos se tornaram prioridades da agenda internacional mexicana. Ainda dentro do regime controlado pelo PRI a política externa já se alterava, sobretudo no final da década de 1990, até mesmo no que dizia respeito aos temas da democracia e dos direitos humanos, apesar de que com certo grau de ambigüidade em muitos casos (Velasco, 2006: 412), num momento em que o processo de democratização interna do país já havia ganhado maior fôlego e se aproximava do seu final.
Argumentamos, assim, que a mudança da política externa já estava em operação bem antes da chegada panista à presidência – o real ponto de inflexão ocorreu na década de 1980. O que a ascensão do candidato do PAN à presidência permitiu foi encerrar o ciclo de reticências e ambigüidades quanto à nova agenda política do pós-Guerra Fria, concluindo a abertura da agenda internacional do país à promoção da democracia e direitos humanos, que já havia começado nos governos anteriores como resultado de pressões domésticas e internacionais
[7].
O governo Vicente Fox e a alternância política (2000-2006)
“
In Mexico today, there is a sense of nostalgia about the well-intentioned foreign policy ambitions of the Mexican government that followed the July 2000 election of Vicente Fox as president” (Roett, 2005: 153)
A terceira onda democrática atingiu a América Latina na década de 1980, e o México se juntou a ela relativamente cedo, promovendo uma reforma eleitoral liberalizante significativa em 1977, mas sua prolongada transição rumo à democracia levaria mais de duas décadas, enquanto que os outros países latino-americanos adentraram a década de 1990 já como regimes democráticos.
No México os processos de crescimento eleitoral da oposição e de abandono do controle autoritário sob as instituições eleitorais pelo PRI estavam em gestação desde o início da década de 1980, mas foi só no final do decênio, sobretudo depois das eleições de 1988, que eles se aceleraram, até culminarem no governo Zedillo nas reformas eleitorais definitivas de 1996 e na perda da maioria de cadeiras do PRI na Câmara dos Deputados em 1997.
Tendo em vista o longo processo de transição democrática no México, pode afirmar-se que o governo Vicente Fox não foi o iniciador da mudança política do país, mas o resultado dela, tendo representado apenas o momento de alternância política no país (Gómez, 2005). A chegada de Fox à presidência é o resultado acumulado de um longo processo de mudanças políticas prévias, e também de transformações profundas, como no plano econômico, que o país vinha sofrendo desde a década de 1980, a partir dos governos dos presidentes De la Madrid (1982-1988), Salinas (1988-1994) e Zedillo (1994-2000). Embora a eleição presidencial do ano 2000 marque um importante ponto de inflexão dentro do prolongado processo de mudança democrática do regime, o seu resultado não significou o início da democratização política no México (Middlebrook, 2004). A vitória de Fox só foi possível graças a importantes mudanças prévias nas relações entre o Estado e sociedade, e graças ainda a importantes reformas institucionais anteriores, sobretudo no plano eleitoral.
Da mesma forma que é um mito afirmar que a transição democrática e as mudanças políticas no país começaram com a vitória de Fox, argumentamos que é outro mito dizer que grandes mudanças na política externa mexicana começaram a ocorrer a partir do ano 2000, ainda que muitas vezes o discurso oficial do governo panista tenha insistido nessa afirmação, que merece ser muito bem matizada.
Importantes mudanças qualitativas ocorreram na política externa, mas é preciso reconhecer que em muitos casos elas já tinham precedentes; ademais, são patentes muitas linhas de continuidades com a política externa implementada pelos últimos governos do PRI. A consolidação do processo de democratização do México levou, de fato, a uma expansão da agenda internacional do país e à inclusão de novas prioridades nas relações internacionais do México, mas se observam marcantes continuidades com a política externa dos governos anteriores – comércio e finanças continuaram a ser temas centrais da agenda do país, o que demonstra a centralidade da dimensão econômica nas relações internacionais do país, e a relação bilateral com os Estados Unidos se intensificou ainda mais, enquanto que o distanciamento do país frente à América Latina foi ainda mais ampliado, padrão em curso desde a década de 1990.
No plano das arenas decisórias o impacto da alternância também revela fortes continuidades; houve a proliferação de novos atores governamentais e não-governamentais interessados em influenciar a política externa e também uma politização dos assuntos exteriores do país, mas apesar desses maiores ruídos domésticos a tomada de decisões permaneceu centralizada no Executivo e foram mantidos basicamente os mesmos padrões de política burocrática em curso desde a liberalização econômica, quando o processo decisório da política externa antes centrado na Secretaria de Relações Exteriores tornou-se mais segmentado e disperso em várias burocracias.
Analisando as mudanças que de fato se desenrolaram, cumpre reconhecer que o governo Fox atribuiu à política externa um novo e importante papel dentro da lógica do processo de consolidação e construção institucional da democracia – o Plano Nacional de Desenvolvimento 2000-2006 anunciou que a política externa teria um papel central no novo projeto governamental, qual seja o de que as reformas democráticas internas seriam ancoradas e apoiadas na adoção de fortes compromissos com os instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos e promoção democrática; assim, a política externa que nos regimes anteriores tinha possuído a função de garantir a estabilidade e unidade nacional, funcionando muitas vezes como válvula de escape a pressões nacionalistas, mantendo a legitimidade do regime, mas também garantindo o desenvolvimento econômico e servindo de barreira a interferências externas, ganhava agora novas funções e não mais precisava se apoiar na defesa de princípios como a não-intervenção para proteger de críticas externas um sistema político que até então havia sido autoritário.
No tema dos direitos humanos foi rompida a reticência de governos anteriores de aceitação da jurisdição plena de mecanismos multilaterais de monitoramento e promoção. Várias ações foram tomadas, como a realização de um acordo de cooperação técnica com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos (dezembro de 2000), o estabelecimento de um departamento especial para supervisionar a execução de tal acordo e os avanços nessa matéria no México (julho de 2002), criação de duas novas subsecretarias na Secretaria de Relações Exteriores (de temas globais e de direitos humanos e democracia), adesão e solicitação de ratificação de vários instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos ou de direito internacional humanitário, como o Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI). Também se apoiou a inclusão de cláusulas democráticas em organismos e declarações internacionais, como a Declaração de Quebec da Terceira Cúpula das Américas (abril de 2001) e a Carta Democrática Interamericana adotada pela Assembléia Geral Extraordinária da OEA em Lima, Peru (setembro de 2001).
A posição tradicional do México frente a Cuba também sofreu alterações com essa ênfase nos direitos humanos e democracia: apesar do custo do conflito diplomático com Cuba e dos desacordos e tensões domésticas com os partidos de oposição no Congresso, o governo mexicano votou em 2002, 2003, 2004 e 2005 a favor de resoluções na Comissão de Direitos Humanos da ONU que solicitavam ao governo de Cuba permitir a visita de um relator especial para analisar a situação dos direitos humanos naquele país. Os governos anteriores do PRI haviam tradicionalmente se abstido em votações desse tipo referentes a Cuba
[8].
No âmbito da concepção de segurança também se verificou uma mudança importante. O México anunciou sua saída do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) em 2001, dias antes dos atentados terroristas aos Estados Unidos, por considerá-lo obsoleto
[9], e depois tentou oferecer uma nova concepção de segurança para as Américas, que ficaria clara na Conferência Especial de Segurança Hemisférica da OEA, realizada no México e organizada pela Secretaria de Relações Exteriores, em outubro de 2003, quando então o país abraçou os chamados “
soft security issues”
[10].
Da Conferência resultou um documento final que incorporou ao conceito de segurança hemisférica uma variedade de novos temas, desde o terrorismo e a mudança climática, passando pelo narcotráfico, até outras atividades criminosas transnacionais e questões de saúde pública como a pandemia de HIV/AIDS. Essa seria uma abordagem de segurança hemisférica multidimensional que segundo os proponentes da Conferência, entre eles o México, seria a única forma de adequar a agenda de segurança aos verdadeiros desafios e realidades do hemisfério e, ademais, seria também a única maneira de render justiça aos diferentes tipos de ameaças e preocupações que os grandes e pequenos Estados americanos enfrentariam. Os defensores dessa visão lembram também que essa concepção abrangente de segurança foi adotada por outras organizações regionais, como a Organização para Segurança e Cooperação, na Europa, e que, além disso, seria essa a oportunidade crucial para atualizar o conceito de segurança coletiva no hemisfério, consubstanciado no TIAR, de 1947, cujas preocupações e mecanismos não mais se adaptariam às novas dinâmicas mundiais.
Por fim, uma análise, ainda que breve, como a que se propõe aqui sobre a política externa foxista não estaria completa sem uma rápida apreciação de seus sucessos e fracassos diante dos objetivos enunciados pelo governo. Jorge Castañeda, secretário de relações exteriores do México de 2000 a 2003
[11], definiu no início do governo que a política externa seria estruturada em dois eixos fundamentais: a) uma relação estreita com os Estados Unidos, e b) maior presença em fóruns internacionais, na qual se incluía o objetivo explícito de ingressar no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Esperava-se ainda utilizar o bônus democrático derivado da alternância política no país para: 1) aprofundar o NAFTA; 2) firmar um acordo migratório com os Estados Unidos, e 3) eliminar o processo de certificação da luta contra as drogas.
Fox buscou estabelecer uma relação estratégica profunda e estreita com a América do Norte, propondo a seus sócios de integração regional aproximar o esquema original do NAFTA ao modelo europeu de integração (Bondì, 2004), por meio da adoção de mecanismos de financiamento ao desenvolvimento do México e da flexibilização dos controles de migração, para a regularização gradual do mercado de trabalho entre os três países. O aprofundamento da integração era visto como uma porta de acesso ao resto do mundo, e também faria do México o elo indispensável entre o Norte e Sul no processo de integração das Américas. Todavia, a recepção dos parceiros regionais foi fria, e o processo de integração se aprofundou de fato apenas em aspectos de segurança ligados sobretudo com controle fronteiriço (acordo de fronteiras inteligentes de 2002), combate ao terrorismo e troca de informações entre agências de segurança. A ASPAN (Aliança para a Segurança e Prosperidade da América do Norte), firmada entre os três sócios do NAFTA em 2005, condensa as preocupações da agenda de segurança nacional norte-americana à qual o México teve que se adequar; a aliança é um compromisso dos três países para fechar as fronteiras da região ao terrorismo, crime organizado, drogas, tráfico de pessoas e contrabando.
A expectativa de construção de uma relação estratégica com os Estados Unidos foi afetada negativamente pelo impacto dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e por uma série de incidentes e desentendimentos diplomáticos que ocorreram desde o final de 2001 entre os dois países, como a demora do México de manifestar apoio aos EUA em face da luta contra o terror, após os atentados, e como, ainda, a posição mexicana no Conselho de Segurança, em 2003, contra a invasão do Iraque
[12].
O governo Fox tentou reverter a securitização da fronteira entre México e Estados Unidos, objetivando retirar do foco das relações entre os dois país a questão do tráfico de drogas para preencher esse lugar com a proposta de um acordo migratório abrangente. O objetivo do governo mexicano, nesse contexto, era defender uma estrutura bilateral de negociações que incluísse uma ampla reforma do sistema migratório norte-americano e a expansão do NAFTA - esperava-se, em última instância, expandir a parceria comercial e econômica segundo os moldes da integração européia, incorporando a dimensão da mobilidade do trabalho.
Contudo, os ataques terroristas de 11 de setembro acabaram com qualquer perspectiva de sucesso dessa estratégia, já que na guerra global contra o terrorismo a fronteira do México passou a interessar o governo norte-americano da perspectiva da segurança, e não da mobilidade de mão-de-obra e da legalização dos trabalhadores mexicanos não-documentados em solo norte-americano. A agenda de segurança bilateral focada até 2001 no narcotráfico passou a ter como centro o terrorismo e o controle fronteiriço; a imigração se tornou uma questão de segurança nacional nos Estados Unidos, o que impossibilitou o avanço da proposta mexicana quanto à imigração, batizada pelo governo Fox de enchilada completa
[13]. Em vez de um acordo migratório abrangente o que se viu de fato foi a construção de um muro na fronteira entre os dois países e o aparecimento do Minuteman Civil Defense Corps
[14].
Podemos concluir, portanto, que de fato houve uma maior aproximação entre México e Estados Unidos no período, mas não da forma que buscava o governo mexicano inicialmente, já que suas propostas de aprofundamento do NAFTA segundo moldes europeus e a proposta de um acordo migratório abrangente e ambicioso não prosperaram, apesar do clima amistoso que em muitos momentos se viu entre os presidentes Fox e Bush
[15]. Nesse sentido, os temas de segurança nacional do governo norte-americano dominaram a agenda bilateral e, como dito, a ampliação do NAFTA ficou restrita ao acordo de fronteiras inteligentes, de 2002, e à ASPAN, de 2005. Uma vitória mexicana que vale assinalar, porém, foi a suspensão em 2002 do processo de certificação da luta contra as drogas pelo Congresso norte-americano para o caso mexicano.
Mas o que podemos dizer da relação do México com os demais países latino-americanos? No governo Fox se assistiu basicamente à continuação do afastamento político gradual do México do conjunto desses países, em curso desde a aproximação política mais forte com os Estados Unidos na década de 1990. O próprio abandono do termo América Latina em favor de América do Sul parece sintomático desse processo. Nesse sentido, Roett argumenta que as dinâmicas hemisféricas cada vez mais se concentram em dois pólos: América do Norte e América do Sul, divisão essa que não fazia sentido nenhum antes da entrada em vigor do NAFTA (Roett, 2005: 161). Antes um ator chave nas agendas políticas latino-americanas, como quando da sua atuação no grupo Contadora, por exemplo, o país distanciou-se progressivamente da América do Sul, em especial, visto que mantém ainda fortes interesses na América Central, como manifestado no Plano Plueba-Panamá
[16].
Por mais que o discurso oficial sublinhe a importância da América Latina para a política externa mexicana, o país perdeu boa parte do prestígio de que gozava na região no passado, e muitos governos da região consideram as posturas do país próximas demais daquelas defendidas pelos Estados Unidos
[17]. As crises reiteradas com Cuba durante o governo Fox em decorrência do voto mexicano referente à situação dos direitos humanos na ilha, bem como as crises com a Argentina, durante a Quarta Cúpula das Américas, em 2005, e em seguida com a Venezuela de Chávez, que resultou da saída desse país do G-3
[18] (acordo de livre-comércio entre México, Colômbia e Venezuela) reafirmaram em boa medida a imagem de que o México estaria alinhado antes com os interesses norte-americanos, o que gerou desconfianças na região, sobretudo do Brasil. Como afirma Roett, os presidentes mexicanos continuarão sempre a viajar para o Sul, mas é a relação com o Norte que de fato estruturará a diplomacia mexicana (Roett, 2005: 163). As afinidades culturais com a América Latina e o desejo sempre presente nos discursos oficiais de diminuir a dependência frente aos Estados Unidos – em boa medida herança do nacionalismo revolucionário – permeiam a política externa mexicana, mas há poucos motivos para se acreditar que as relações entre o México e a América do Sul, em especial, assistirão a um aprofundamento.
À guisa de conclusão, é preciso ainda recordar que a despeito das substanciais mudanças descritas da política externa mexicana em curso desde a década de 1980, aprofundadas ainda mais no governo Fox – e, nesse sentido, não iniciadas por ele –, elementos tradicionais convivem com outros mais novos até hoje nas relações internacionais do México. A linguagem e o discurso nacionalista dos princípios da política exterior
[19], em especial, têm ainda grande peso e são constantemente mobilizados tanto pelo governo quanto por partidos políticos e outros atores sociais (Covarrubias, 2006: 410), apesar do enfraquecimento ao longo dos anos do discurso oficial e da tradição diplomática que enfatizavam de maneira intransigente os princípios de autodeterminação, soberania interna e não-intervenção.
Mesmo no governo Fox, que adotou a democracia e os direitos humanos como prioridade da política externa do país, persistem reservas quanto a casos de intervenção humanitária e participação em operações de manutenção da paz, e na visita do presidente à China foi aplicado da forma mais tradicional o princípio da não-intervenção, no sentido de não pronunciamento de críticas às violações dos direitos humanos no país (idem: 418-419). E mesmo quando o governo introduziu o tema dos direitos humanos e democracia, como na relação bilateral com Cuba, o conflito doméstico suscitado no México demonstrou a força do discurso e da linguagem dos princípios, no caso o da não-intervenção, na política externa do país, e mostrou como a conciliação do novo e do tradicional no âmbito das relações internacionais mexicanas ainda suscita conflitos e tensões, demonstrando que a redefinição do nacionalismo mexicano ainda é controversa
[20].
[1] O artigo 89 da Constituição dos Estados Unidos Mexicanos lista os princípios tradicionais da política externa mexicana, quais sejam: a autodeterminação dos povos, a não-intervenção, a solução pacífica de controvérsias, a proscrição da ameaça e do uso da força nas relações internacionais, a igualdade jurídica dos Estados, a cooperação internacional para o desenvolvimento, e a luta pela paz e segurança internacionais.
[2] Mario Ojeda Gomes (2006) argumenta que, após a Segunda Guerra, surgiu entre o México e os Estados Unidos uma regra tácita, um “acordo para discordar”, segundo o qual o México discordava dos Estados Unidos em questões fundamentais para o México, mas não necessariamente importantes para o governo norte-americano, enquanto cooperava em questões essenciais para os Estados Unidos que implicavam poucas vantagens para o México. Esse acordo tácito só pode ser explicado pelo interesse norte-americano em assegurar a estabilidade do México – os Estados Unidos compreendiam que boa parte dos desacordos e posturas mais críticas do governo mexicano se destinava ao “consumo interno”, i.e., eram orientados para apaziguar grupos domésticos mais à esquerda com o discurso da independência e autonomia da política externa. Esse mesmo interesse pela estabilidade doméstica mexicana explica ainda a ausência de críticas fortes do governo norte-americano ao México, dado o temor de que isso pudesse ser interpretado como uma forma de intervencionismo, o que poderia causar distúrbios no país vizinho. Um exemplo claro do silêncio dos Estados Unidos frente ao México ocorria na questão da democracia, já que interessava mais um regime autoritário estável comprometido com a luta contra o comunismo – e depois com as reformas neoliberais – do que um regime democrático instável. Em 1988, por exemplo, quando ficou claro que mais democracia no México significaria a vitória do partido de esquerda PRD, o governo norte-americano não hesitou em aplaudir a vitória controversa de Salinas, do PRI, comprometido com as reformas neoliberais.
[3] É interessante notar a origem dos vetores transformadores da política externa nesses dois momentos. Enquanto em 1970 a mudança ocorre em decorrência de pressões políticas e econômicas domésticas, em 1982 a natureza das pressões é essencialmente externa e de ordem econômica.
[4] O movimento estudantil e outros grupos sociais exigiam um sistema político mais democrático e aberto.
[5] O governo mexicano se opôs, por exemplo, a uma série de medidas que a OEA (Organização dos Estados Americanos) tomou com a finalidade de promover e defender a democracia no hemisfério, dentre as quais se destacam o “Compromisso de Santiago com a democracia e a renovação do sistema interamericano”, que buscava estabelecer os mecanismos de atuação da OEA no caso de golpe de Estado ou outra forma de interrupção da democracia num de seus membros, e a Resolução 1080 de 1991 que estabelece mecanismos para a adoção de medidas a respeito de ameaças contra a democracia no Hemisfério (Velasco, 2006: 411-412).
[6] O governo mexicano recusou-se a aceitar a nova agenda de segurança do pós-Guerra Fria, que insinuava o uso da força militar, em último caso, em questões como narcotráfico, direitos humanos, devastação ambiental e democracia (González, 2001: 662).
[7] Ainda que o tema dos direitos humanos e da democracia não seja novo na política externa mexicana, já que nos governos Salinas e Zedillo foram feitas concessões na temática, como a aceitação da presença de observadores eleitorais internacionais e mesmo de uma cláusula democrática no acordo comercial com a União Européia, é preciso lembrar que nesses casos as mudanças na posição do governo foram causadas por pressões internacionais, como a da rede transnacional de direitos humanos (Bernardi, 2008). A mudança qualitativa da política externa do governo Fox foi a de ter inserido esses assuntos de forma espontânea como prioridades da agenda internacional mexicana.
[8] O México foi o único país latino-americano que se recusou a romper relações diplomáticas com Cuba durante a Guerra Fria, e teve tradicionalmente uma postura simpática com o regime de Fidel.
[9] O México abandonou o tratado de fato em setembro de 2002.
[10] A proposta mexicana seria outra fonte de tensões e resistências com os Estados Unidos, dada a preocupação com a agenda de segurança no contexto pós-11 de setembro.
[11] De 2003 a 2006 o secretário de relações exteriores foi Luis Ernesto Derbez, anteriormente Secretário de Economia.
[12] Entre outros incidentes, que não as controvérsias suscitadas sobre a invasão do Iraque e a saída do México do TIAR, podem ser citados os desacordos sobre a aplicação de pena de morte nos Estados Unidos a cidadãos mexicanos e a decisão do México de recorrer à Corte Internacional de Justiça contra o governo norte-americano e, ainda, as críticas de funcionários norte-americanos e do embaixador dos Estados Unidos no México sobre as condições de insegurança, tráfico de drogas e corrupção no México.
[13] O pacote da “enchilada completa” incluía um programa expandido de trabalho temporário; um aumento na transição dos mexicanos não documentados localizados nos Estados Unidos para o status de legalizados; uma quota maior de vistos norte-americanos para mexicanos; incremento na segurança da fronteira e no combate aos traficantes de imigrantes; e mais investimentos naquelas regiões do México de que saíam os maiores contingentes de imigrantes.
[14] Para mais informações a respeito, visitar a página: http://www.minutemanhq.com/hq/.
[15] No início de seu governo o presidente Bush chegara a declarar que o México seria a prioridade de sua política externa.
[16] O PPP englobava na sua concepção um projeto de integração e desenvolvimento regional de sete Estados centro-americanos e nove Estados mexicanos do sul e sudoeste. Entretanto, terminado o governo Fox, a maioria dos analistas concorda que os resultados efetivos do plano foram poucos.
[17] A despeito dos fortes vínculos econômicos com a América do Norte o governo mexicano reconhece que é necessário desempenhar uma diplomacia ativa com os demais países latino-americanos, sobretudo os sul-americanos. Todavia, mesmo no campo econômico-comercial, no qual o México se destaca por seu grande número de tratados de livre comércio, a importância das relações com os países da América do Sul ainda é muito pequena.
[18] Fracassava-se, assim, definitivamente a ambição de Fox de fortalecer o G-3 para que, com isso, o México pudesse ocupar um papel construtivo no conflito colombiano.
[19] Entenda-se aqui a tradição diplomática mexicana de forte compromisso com o direito internacional público, especialmente no que tange ao respeito dos princípios de soberania interna, não-intervenção e autodeterminação dos povos.
[20] A cooperação do governo Fox com o governo norte-americano em questões de segurança depois dos atentados de onze de setembro de 2001 também revelou a força da ideologia nacionalista – os partidos de oposição no Congresso acusaram o presidente Fox de ser entreguista e submisso aos Estados Unidos, por comprometer de forma perigosa a soberania mexicana.Referências Bibliográficas
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